quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Cemitério de Pianos. José Luís Peixoto. «No início da tarde de sábado, olhámo-nos com uma satisfação tímida quando soubemos que o piano estava pronto. A meio da manhã, o meu tio saiu para ir buscar o afinador»

jdact

«(…) Nas sombras imaginava segredos de um tempo, antes de eu nascer, que me seria proibido para sempre: a eternidade: e que, no mesmo instante, se tornava tão concreto e simples como os objectos que tocava todos os dias, como o caminho entre a casa e a oficina, como as memórias que tinha e que me guiavam. Sozinho, sentindo-me vigiado por todos os pianos sem arranjo, avançava. Contornei um piano vertical e, no fundo desse novo corredor, vi o meu tio com os braços dentro de um piano de cauda e apressei-me na sua direcção. Deu um passo atrás, pousou-me uma mão no ombro, apresentou-me o mecanismo do piano com a outra mão e disse que aquele seria um dos pianos a que voltaria para buscar peças. Olhei-o incrédulo, mas encontrei tal confiança que, nesse momento, deixei de ter dúvidas de que seríamos capazes de consertar o piano. Nessa tarde, e no dia seguinte, e no outro, e na manhã de sábado, aprendi a parte mais importante daquilo que, durante toda a minha vida, haveria de aprender sobre pianos. Solene, o meu tio olhava-me directamente com o seu olho esquerdo quando me queria explicar os pontos que eu não deveria esquecer nunca. Eu abanava a cabeça e prestava atenção a cada uma das suas palavras. Ficavam gravadas em mim, como se, no meu interior, existisse um lugar feito de pedra à espera de receber a forma do significado dessas palavras. Da mesma maneira, prestava atenção a todas as histórias que o meu tio contava. Quando se perdia em pormenores e começava a esquecer-se de contar o fim de alguma, eu perguntava-lhe o que tinha acontecido depois do ponto em que se afastara. Ele não estranhava o meu interesse súbito pelas suas histórias e continuava. Nas histórias que o meu tio contou durante esses dias, percebi um pouco mais da minha própria história. O meu pai, como o seu pai antes dele, tinha passado anos a fazer portas e janelas porque não conseguia sobreviver apenas de consertar pianos. Na maior parte do tempo, o meu pai fazia portas e janelas, fazia bancos para as pessoas se sentarem, fazia mesas a desejar que as pessoas tivessem pratos de sopa para pousar nelas; mas, em todas as ilusões, escutava pianos, como se escutasse amores impossíveis. Quando acabava de consertar um piano, sozinho, sem saber uma nota, o meu pai fechava a oficina toda para, no centro da carpintaria, tocar músicas que conhecia e músicas que inventava. Gostava talvez de ter sido pianista mas, nem mesmo quando ainda não tinha desistido de todos os seus sonhos, se tinha permitido sonhos desse tamanho. O meu tio fixou o seu olho esquerdo em mim para garantir que eu nunca iria esquecer e disse: o teu pai, quando falava ou pensava em pianos, tinha redemoinhos de música dentro dele. Durante esses dias, o meu tio mandou-me muitas vezes ao sótão.
Antes, apontava-me a peça de que precisava: um abafador, uma mola da alavanca, um botão de regulação: e, logo a seguir, voltava a esconder o rosto no interior do piano. Nas primeiras vezes, a voz da minha mãe, repetida pela memória, voltava a dizer-me as palavras de quando eu era criança e lhe falava daquela porta fechada na minha oficina. Depois, aos poucos, fui-me convencendo com as palavras do meu tio: o teu pai iria ficar tão feliz se aqui estivesse. E comecei a acreditar que, qualquer que fosse a ideia da minha mãe: proteger-me, proteger a lembrança do meu pai: eu estaria a respeitá-la porque estava a dar uma vida nova aos sonhos do meu pai, da mesma maneira que estava a dar uma vida nova às peças mortas daqueles pianos. Às vezes, demorava-me um pouco mais do que seria necessário porque ficava a entender a tranquilidade, ou a olhar para os pianos que me rodeavam e a imaginar as histórias que cada um deles guardava: palcos de tábuas, bailes, mestres a ensinar, meninas com punhos de renda a aprender. Quando regressava à carpintaria, o meu tio nunca dava pelo atraso e sorria-me quando lhe estendia a peça certa que tinha pedido.
No início da tarde de sábado, olhámo-nos com uma satisfação tímida quando soubemos que o piano estava pronto. A meio da manhã, o meu tio saiu para ir buscar o afinador. Chegou, trazendo-o pelo braço. O afinador era cego. Apontava a cabeça para cima ou para lugares onde não acontecia nada. A cabeça girava-lhe autónoma sobre o pescoço. Era mais velho do que o meu tio. Tinha as mãos lisas. Falava pouco. Passámos horas a acertar notas em cada tecla. O afinador apertava as cordas com uma chave de prata que segurava, firme e cuidadosamente, entre os dedos. E os sons puros: nítidos no silêncio: desenhados no ar, a demorarem-se breves, a ecoarem na memória e a deixarem outro silêncio: outro silêncio: outro silêncio diferente. Quando por fim se ouviu uma palavra, foi o meu tio que me pediu para ir avisar o italiano. Sorri-lhe, abanei a cabeça afirmativamente e não fui capaz de dizer nada porque, dentro de mim tinha um redemoinho infinito de música infinita». In José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, 2006, Bertrand Editora, Quetzal Editores, 2009, ISBN 978-972-564-823-0.

Cortesia de QuetzalE/JDACT