sábado, 13 de janeiro de 2018

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Foi a loucura! As mulheres começaram a gritar, umas tantas desmaiaram, e os homens, muitos dos quais tinham ficado na rua por falta de espaço no interior da abadia…»

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«(…) Mais sereno, estendeu-se a todo o comprimento da cama, cobriu os dois com a manta que oferecera à rapariga no início do Inverno e ali ficou, pensativo e confuso, apegado como ela ao silêncio do presente e das memórias. Acaso vos lembrais de como me conhecestes e me salvastes da morte violenta?, perguntou Raquel, momentos passados, na ânsia de lhe mitigar o desconsolo causado pela imprevista e amaldiçoada falha. Claro que se lembrava! Tinham decorrido sete anos sobre a data em que as suas vidas se cruzaram. Estava-se em Abril de mil quinhentos e seis e Lisboa vivia atemorizada pela impiedosa peste que chegava a sepultar mais de cem pessoas por dia. O próprio rei, temendo que a doença o escolhesse e por desdita o não poupasse, deixara a cidade meses antes, levando consigo, e como de costume, a sua vasta corte. Primeiro instalara-se em Almeirim, depois em Santarém, e, mais tarde, sempre em fuga ao alastramento territorial da epidemia, na Alcáçova de Abrantes. Com o monarca, mas cada um para seu lado e pelos seus meios, fugiram também os mais ricos, os comerciantes, a burguesia em geral, excepto uns tantos que, como Diogo Pacheco, aceitaram a sorte com desapreço, ficando Lisboa quase toda entregue aos pobres e aos mendigos, aos marinheiros e aos mesteirais de fracos rendimentos económicos, às putas e aos bruxos, aos frades e aos ladrões, aos representantes do baixo clero e à tradicional praga de criminosos.
No entanto, quer os que partiram, quer a maioria dos que ficaram, tiveram como certo que a peste tomara conta da cidade não tanto por qualquer trágica desventura, mas por um amargo castigo dos céus. Pois se a morte os ameaçava, alguma razão havia. Por isso, e porque temiam a Deus Pai, todos os dias, da alvorada ao anoitecer, centenas de homens e mulheres deslocavam-se em peregrinação penitencial às igrejas para rezar e pedir ao Altíssimo a salvação das almas e a remissão dos seus pecados. Até que na manhã de quinze desse mês, domingo de Pascoela, durante uma celebração religiosa na igreja de S. Domingos, ocorreu um episódio que haveria de marcar para sempre as vidas de Diogo Pacheco e Raquel Aboab. Ia a missa a meio quando um dos fiéis, no ardor angustiante das suas preces, ergueu os braços entre a multidão e, aos berros, garantiu queacabara de ver naquele instante uma luminescência estranha no crucifixo pendurado na parede. Foi a loucura! As mulheres começaram a gritar, umas tantas desmaiaram, e os homens, muitos dos quais tinham ficado na rua por falta de espaço no interior da abadia, juravam que também eles haviam visto na cruz um sinal luminoso.
A notícia do assombro depressa se espalhou pela cidade. De modo que se o número de crentes na celebração eucarística daquele domingo tinha sido grande, maior foi o dos que se juntaram, à mesma hora e no mesmo templo, dois dias mais tarde. Todos queriam ver o sinal na cruz; todos queriam contemplar o prodígio; todos queriam ser testemunhas do milagre. E quando, a certa hora, os raios do Sol entraram pela fresta de uma janela e chocaram contra a pequena pedra de cristal embutida na madeira do
crucifixo, irradiando por alguns instantes uma centelha de luz, um judeu convertido, que assistia à cerimónia, levantou a voz e disse que aquilo não passava de um simples reflexo, casual e sem importância. A denúncia não agradou aos crentes, muito menos satisfez o frade dominicano que presidia no púlpito à oblação. Sumido no ódio mais profundo, o abade apontou o dedo ao converso, acusou-o de heresia e, em estado de descontrolada insanidade, pediu a todos que liquidassem o maldito povo hebreu. Foi o que os devotos quiseram ouvir. No mesmo instante, a turba atirou-se ensandecida ao homem, arrastou-o pelos cabelos até ao adro da igreja para então, depois de espancado e de lhe arrancarem os olhos, ser lançado à fogueira, no Rossio». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.                         

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