sábado, 2 de dezembro de 2017

A Filha do Barão. Célia C. Loureiro. «Ficou encantado com as seges que percorriam a distância entre a Praça do Comércio, onde se situava o café que frequentava, e Belém»

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1805 - 1806
«(…) Estava rodeado de outros investidores, como ele próprio, que falavam dos caminhos-de-ferro como o negócio do futuro e das guerras ultramarinas com uma amargura crescente. Odiavam Napoleão, mas concediam-lhe cada entrelinha das suas conversas. Na realidade, invejavam-lhe era as vitórias. Daniel não era patriota de gema, sentia-se tomado pelos ventos dos quatro cantos do mundo e só não levantava amarras porque tinha os negócios pendentes e não confiava em ninguém para os gerir. Muito menos no cretino do marido da irmã mais velha, que, mal deitasse as mãos aos seus pertences, desviaria o que conseguisse. Pudera, com um rendimento anual de setecentas libras, as seis mil de Daniel deixavam-no em alvoroço. Esperara um dote generoso da parte do cunhado, mas o filho de Humphrey Turner não se deixava intimidar por caras feias. Tão-pouco lhe importava ser o objecto de bajulação de toda a família. A irmã Sarah era honesta e não atribuía aos fundos do pai, com que Daniel primeiramente investira, a construção do seu pequeno império. Sabia que nas mãos do senhor Turner nunca se teriam multiplicado daquele modo. E havia Lizzie, que era a irmã mais nova e que o amava incondicionalmente.
Era um feito admirável ter ascendido praticamente do nada para o patamar que atingira. E tinha apenas vinte e quatro anos quando adquirira a adega em Portugal, tendo feito as bagagens e rumado àquelas latitudes, nesse primeiro ano do novo século. Passara os primeiros meses na capital, correspondendo-se com os portugueses que lhe tinham entregado o espaço onde criaria a adega. Nesse ano de 1805 já era um transportador e armazenador de vinhos de renome na área, trazendo-os Douro abaixo e mantendo-os durante o tempo necessário na humidade granítica de Vila Nova de Gaia. Ambicioso como era, não tencionava ficar-se por aí. Ia começar a produzir, transportar e armazenar o seu próprio vinho do Porto. Ia monopolizar o seu negócio para lhe garantir rentabilidade. Para isso unira-se a João Albuquerque, barão de Arraiais, que conhecera no Café do Comércio, em Lisboa.
João era ali cliente habitual, e Daniel Turner, pouco ambientado com o sol e a diversidade cultural de uma cidade como Lisboa, não sabia ao certo aonde dirigir-se e por onde começar a averiguar. Tendo desembarcado em Lisboa, não ia desperdiçar a oportunidade de conhecer a capital de um outro império que não o britânico, plena de oportunidades de negócio como era a cidade branca, à qual chegavam e partiam semanalmente embarcações de tantos cantos do mundo civilizado. A diversidade cultural era arrebatadora; ia de negros libertos vindos de África, que calcorreavam a cidade descalços, até homens que faziam parte de núcleos de elite no Brasil e estavam de visita à terra mãe com histórias de selvagens, feras e chuvas tropicais. Viam-se alimentos invulgares em Portugal, frutos incomuns como a laranja surgiam nos pomares de todos os quintais, comia-se caça, mas também muito peixe fresco, o milho era frequente nos pratos tradicionais e encorpava o pão. Ele tivera mesmo a sorte de frequentar os melhores círculos e ficou espantado com a proliferação de ingleses por este território no Sudoeste da Europa continental.
Ficou encantado com as seges que percorriam a distância entre a Praça do Comércio, onde se situava o café que frequentava, e Belém.
À porta do café juntavam-se as meninas afectadas, em idade casadoira, que esperavam nas carruagens pelas criadas que lhes traziam os sorvetes. Mariana Albuquerque era uma delas, em tudo diferente das crianças inglesas, de rostos angelicais e olhos claros. os cabelos das crianças portuguesas eram escuros como os dos ciganos que percorriam a Inglaterra nas suas tendas de nómadas, e a filha de João, postada fora da liteira com uma criada, à espera que o pai regressasse com o sorvete de cacau açucarado, não diferia das restantes. Quando a vira na companhia do pai, achara-a sempre uma réplica de cigana inglesa, de pele tocada pelo sol que reflectia no Tejo, olhos negros e cabelos cor de ébano. Era baixa, o peito liso como uma planície sob o espartilho e nem as rendas delicadas do decote baixo aliviavam essa impressão de saltimbanca. Das únicas duas vezes que fora abordada por João na sua presença, limitara-se a encaminhar o sorvete para as beiças de menina gulosa e a ignorá-lo. Tudo o resto, das gaivotas às vendedoras que equilibravam tripas sobre a cabeça, lhe parecia mais digno da sua honrosa atenção. O pai gabava-lhe o inglês, mas a fidalga de onze anos não lhe dedicara um bom-dia que fosse. João desculpara-se em seu nome. Pai algum inglês se desculpava em nome da filha mimada». In Célia Correia Loureiro, A Filha do Barão, 1809, Marcador Editora, 2013/2014, ISBN 978-989-754-039-4.

Cortesia de MarcadorE/JDACT