sábado, 16 de setembro de 2017

O Papa e o Filho Bastardo. Paul Strathern. «Alexandre VI manteve-se obstinado na sua posição, mas Della Rovere e os cardeais que o apoiavam pressionavam constantemente o rei para que afastasse da Santa Sé um papa tão cheio de vícios»

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«(…) Antes da chegada dos franceses, as batalhas tinham coreografado em grande medida os assuntos em Itália, dirigidas por condottieri rivais sem o mais pequeno desejo de infligir ferimentos nos mercenários seus adversários, que bem poderiam ser os aliados na época seguinte. Quando uma das partes era empurrada para uma posição indefensável (quer dizer, uma posição da qual não pudesse fugir rapidamente), admitia a derrota, e os dois comandantes rivais chegavam a um acordo mútuo satisfatório. O pesado exército medieval francês não conhecia essas subtilezas. As batalhas eram travadas com um vigor sedento de sangue e terminavam com frequência com o massacre de todos os que não conseguiam fugir. Era assim que a guerra era travada na Europa do Norte, e o exército francês estava bem treinado neste tipo de actividade, pois a Guerra dos Cem Anos, contra os ingleses, tinha acabado apenas umas décadas antes. Ao mesmo tempo, o exército francês levava para Itália uma arma nova: o grande canhão móvel. Os italianos dispunham de canhões mais pequenos, puxados por bois pesadões, e cujas munições consistiam em pequenas balas feitas de pedra, que geralmente se despedaçavam contra os muros sólidos das fortalezas. Os enormes canhões franceses estavam montados de modo a serem puxados rapidamente por parelhas de cavalos através do país, e disparavam enormes balas de ferro capazes de abrir buracos nos mais impressionantes muros das fortalezas. A medida que Carlos VIII marchava em direcção ao sul, as fortalezas situadas no seu caminho capitulavam uma após outra, muitas vezes sem ser preciso disparar um único tiro, tal era o terror que o exército francês infundia mesmo antes da sua chegada.
Ao papa Alexandre VI, em Roma, chegava a notícia de que o cardeal Ascanio Sforza tinha persuadido os seus aliados Colonna a fugir e a tomar os portos costeiros de Óstia e Civitavecchia em nome dos franceses. Roma ficava assim isolada das suas fontes de abastecimento. Quando Carlos VIII se virou para Roma, as forças dos Orsini desertaram também para o lado dos franceses. Alexandre VI compreendeu que a resistência armada seria inútil e enviou as poucas tropas que ainda lhe restavam para Nápoles, no Sul. No dia 14 de Dezembro de 1494, Carlos VIII e o seu exército entraram em Roma sem encontrar resistência. As suas tropas eram tão numerosas que as colunas de soldados de infantaria franceses, mercenários suíços e esquadrões de cavalaria levaram desde as 15 até às 21 horas a passar pelas ruas. À procissão aparentemente interminável seguiu-se o troar dos 36 canhões montados rolando por cima das pedras da calçada, arrastados por cavalos. As multidões pasmavam aterrorizadas ao velem os canhões de quase 2,5 metros, cada um pesando 2700 quilos, os seus canos de bronze a luzir à luz das tochas, as bocas negras suficientemente grandes para lá entrar a cabeça de um homem.
Ainda assim, Alexandre VI recusou-se a uma rendição pública. Junto com o cardeal César Bórgia, seu filho, fugiu através do túnel secreto do Vaticano para a velha e maciça fortaleza de Castel Sant'Angelo. Naquele momento, as ruas estavam em tumulto. Carlos VIII mandou montar cadafalsos públicos, para dissuadir os seus homens de actos de pilhagem, mas os soldados franceses e suíços tentaram trepar os muros barricados dos palazzi, em busca de bens para saquear. Nem a residência da mãe de César, Vannozza, escapou: os mercenários suíços conseguiram entrar e saqueá-la, levando 800 ducados. Por aquela altura, já o inimigo jurado de Alexandre VI, o cardeal Giovanni della Rovere, se juntara a Carlos VIII e encorajava-o a pedir que o papa se submetesse a um concílio que procedesse à reforma do papado. Nas palavras do historiador contemporâneo Guicciardini, para Alexandre VI, a ideia de fazer reformas era um pensamento tão terrível que não havia palavras que o descrevessem.
Alexandre VI manteve-se obstinado na sua posição, mas Della Rovere e os cardeais que o apoiavam pressionavam constantemente o rei para que afastasse da Santa Sé um papa tão cheio de vícios e abominações e elegesse outro. Por fim, Carlos VIII perdeu a paciência e mandou alinhar os canhões frente aos muros do Castel Sant'Angelo; mas, antes que fosse disparado um único tiro, uma grande secção de quase dez metros das muralhas antigas desabou sozinha, arrastando os soldados que guardavam as ameias e sepultando-os num monte de escombros. Mal a nuvem de poeira tinha assentado, já Alexandre VI concordava em reunir-se com Carlos VIII». In Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.

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