terça-feira, 5 de setembro de 2017

A Princesa Traída por Pedro e Inês. Isabel Machado. «Afonso IV de Portugal juntara a sua assinatura à de Afonso XI e já cumprira uma parte do que lhe cabia. Não sem tristeza, até as lágrimas…»

jdact

Constança
Paço de Coimbra, Reino de Portugal, 1330
«(…) O silêncio apoderara-se da câmara do rei. O triunfo fora curto. Afonso IV, pouco dado a resignações ou a entregar-se ao destino, travava uma luta íntima. Nem quebrara ainda o jejum, naquela manhã. Encostou-se ao espaldar alto da cadeira, de cotovelo sobre um dos braços, para apoiar o queixo sobre a mão aberta em concha. Não manifestava a sua pose qualquer sinal de descanso. Pelo contrário, todos os presentes sabiam que o rei de Portugal se mortificava de preocupação. Ao lado do marido, a rainha dona Beatriz pousara sobre o colo as mãos apreensivas, cobertas com anéis de esmeraldas. Um rei jamais quebrava a sua palavra, era esta a verdade que transtornava a mente do soberano. Da palavra honrada lhe vinha o apreço do povo e o respeito fora de portas. Não era longínqua a promessa firmada em tratado com Castela. Fora dia de festa, e não era para menos. Prometendo o casamento dos seus dois filhos com príncipes castelhanos, o monarca alardeara ao reino uma geração de paz, que sempre trazia abastança e mesa farta.
Afonso IV de Portugal juntara a sua assinatura à de Afonso XI e já cumprira uma parte do que lhe cabia. Não sem tristeza, até as lágrimas lhe haviam assomado aos olhos quando entregara a filha Maria, de celebrada beleza e que muito amava, ao rei de Castela. Mas ocultara de todos o seu desassossego, sabendo que espezinhara o orgulho de Juan Manuel, amigo de Portugal, reino que conhecia bem. Havia quem defendesse que o ambicioso fidalgo castelhano até sobre a coroa portuguesa julgava ter direito, mas essa especulação fantasiosa incomodava pouco o rei Afonso IV, outros delírios lhe tiravam o sono. O mais recente era a renúncia do que ainda restava por cumprir do tratado firmado com o castelhano: o enlace do seu herdeiro, o infante Pedro, com dona Branca de Castela, prima de Afonso XI e do próprio príncipe português. A moça viera para Portugal ainda criança, a aguardar idade nubente. Era esposa no papel e â espera da consumação futura do matrimónio ameaçava tornar-se um sério embaraço, desde a rejeição que o infante resolvera tornar pública e irreversível.
Afonso IV endireitou o corpo. Que vos disse o infante?, questionou, virando para Lopo Fernandes Pacheco o olhar raiado de vermelho, da noite em branco. O principal conselheiro e braço-direito do monarca, sempre inteirado dos pensamentos d'el-rei, fez um leve aceno com a cabeça, antes de falar. Aguardara pacientemente a sua deixa, sabedor do poder da sua palavra sobre as decisões do soberano. Que se desgostou da infanta, senhor, ripostou, sem rodeios. Que fundamentos apresentou? Que é falha de entendimento. Pobre de espírito, dizeis?, tornou o monarca. Assim mo assegurou. Aquele repúdio custaria a paz a Portugal, pensou el-rei, sentindo crescer a cólera pelo desmando do seu herdeiro, que desbaratava muitos anos de bom governo e ágil negociação. A rejeição de Branca abalaria também as relações de Portugal com o reino de Aragão, cujo soberano, Afonso IV, era tio da infanta. A aliança aragonesa há muito que servia os interesses portugueses, contra a hegemonia castelhana na Península. O papa não se furtaria à anulação, continuou o conselheiro, à laia de consolo.
Afonso acenou. Olhou a sua mãe, a rainha-viúva Isabel, tia do monarca de Aragão, que o povo apelidava de santa. Já raramente abandonava o Mosteiro de Santa Clara, de Coimbra, onde entrara sem tomar votos depois da morte do marido, dedicada à caridade e às orações. Mas nunca deixava de acudir a uma discórdia familiar, já mediara tantas e graves nas muitas décadas que levava no reino português. A velha senhora, o semblante louro fragilizado por muitos anos de jejuns, penitências e infortúnios, transmitiu ao filho paciência com o olhar sereno. Escreveria para Aragão, disse. O parentesco dos noivos apressaria a decisão da Igreja, contrária a enlaces de sangues próximos. Mas não travará a ira de Castela, respondeu-lhe Afonso. Era imprescindível não acicatar os ânimos de Afonso XI, para segurança das fronteiras do reino e do bem-estar da sua filha Maria. Cresciam rumores de devassa na corte castelhana por via dos excessos do monarca, de génio intratável, e por conta da paixão pela cortesã Leonor Gusmão, que não amortecera com o casamento português. Era mais um caso de alcova a passar para a política, fazendo perigar alianças e tratados de gerações. Era assim o amor dos homens, tão capaz de cegueira como de violência, quando eram tomados pela luxúria. Chamai o infante, ordenou Afonso a Lopo Fernandes Pacheco. Quero vê-lo a sós». In Isabel Machado, Constança, A Princesa Traída por Pedro e Inês, A Esfera dos Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6.

Cortesia de EdosLivros/JDACT