quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Diário do conde de Sarzedas. Vice-rei do Estado da Índia (1655 -1656). Artur T. Matos. «A partir de 1675 procedeu a uma grande recolha de documentos e variadas informações, além de lembranças da sua casa, que ocuparam mais de uma centena de livros manuscritos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«No início da Primavera de 1655 largava do Tejo, rumo a Goa, a armada da carreira que anualmente fazia a ligação entre Portugal e o Estado da Índia. A deste ano era constituída por quatro embarcações: a almiranta Santíssimo Sacramento da Trindade, galeão de 54 peças, sob o comando de António Sousa Meneses; a Bom Jesus da Vidigueira, nau de 30 peças, de que era capitão Jerónimo Carvalho, piloto Manuel André e mestre Luís Fernandes; o galeão de 30 peças, São Francisco, comandado por Baltasar Paiva Brandão; e o patacho Santa Teresa de Jesus, de 12 peças, conduzido por Manuel Castro Favila ou Tavila. Esta frota tinha a particularidade de transportar o novo vice-rei Rodrigo Lobo Silveira, conde de Sarzedas, que viajava na nau Bom Jesus da Vidigueira, feita nau capitânia. Do ocorrido, para além do relato do jesuíta Joseph Tissanier, incluído na sua relação de viagem de França ao reino de Tonquim, editado poucos anos depois, chegaria até nós o diário que o vice-rei elaborou, desde que se despedira de Lisboa, até ao termo da sua laboriosa e atormentada governação. Acompanhavam esta armada três embarcações com destino à Madeira e seis a Cabo Verde e Maranhão e uma a Angola que, ao longo do percurso, se foram gradualmente dela separando.
Recorde-se qu e depois de uma década de infortúnios para a carreira da Índia que se seguiram à Restauração, a partir de 1650 experimentou-se uma recuperação que se prolongará até 1658, altura em que, de novo, se acumularão desaires, que se arrastarão até meados da década seguinte. As duas naus eram seguras e velozes, enquanto o galeão era navio de mau governo e, com o patacho, acabariam por ir dilatando a viagem. Todavia, o comando das várias embarcações havia sido cometido a capitães e pilotos experimentados: Jerónimo Carvalho era tido por prático nas coisas do mar e os pilotos da almiranta, do patacho e da Bom Jesus haviam feito esta viagem em anos anteriores.
Como é do conhecimento dos
estudiosos deste tema, são escassos os relatos e outras fontes para o estudo desta carreira, sobretudo para os séculos XVII e XVIII. Daí a importância que adquirem os que gradualmente vão surgindo, um pouco ao acaso, já que o principal acervo para o seu estudo, os livros de nau, terão desaparecido nas chamas que devoraram o arquivo da Casa da Índia no rescaldo do terramoto de Lisboa, de 1755. É certo que missionários e viajantes deixaram muitas vezes relatos, impressões e comentários das suas viagens e as de vice-reis e arcebispos deram também ocasião a relações, quase sempre anónimas, constituindo assim um corpus documental de grande relevância para o estudo do tema. Todavia estas últimas, porque elaboradas em muitos casos com a intenção de enaltecer o quotidiano ou a intervenção do passageiro ilustre a bordo, distorcem de algum modo a realidade, exigindo ao historiador redobrada atenção no trabalho de crítica à fonte.
O Diario do Senhor conde de Sarzedas na viagem e governo da India, constitui um repositório informativo de enorme riqueza histórica. Nele averbou, dia a dia, a navegação efectuada e as condições climáticas que a determinaram, a rotina do quotidiano, como uma imensidade de acontecimentos ocorridos ao longo dos cinco meses de viagem. Mas, chegando a Goa, prosseguiu sem qualquer interrupção o registo diário da sua actividade, tombando aí alguma correspondência e outros poucos documentos. Mas o autor tece também comentários sobre a situação económica, política, social e religiosa do Estado Português da Índia, como opina sobre muitos dos seus intervenientes. Denuncia inoperâncias e fraudes e critica severamente o funcionamento das instituições. Daí a acrescida importância do seu conteúdo. Se um diário é, por princípio, uma fonte importante para a história do quotidiano, o certo é que a rotina que o conde de Sarzedas imprimiu à sua quase frenética actividade político-administrativa, não constituirá um aliciante para o desenvolvimento do tema. Daí a exigência de alguma imaginação metodológica no aproveitamento da fonte.
Começado à data da partida de Lisboa, a 23 de Março de 1655, terminaria a 1 de Janeiro de 1656, cerca de duas semanas antes da sua morte, ocorrida a 13 de Janeiro. O diário de Rodrigo Lobo Silveira chegou até nós através de uma cópia mandada executar por Luís Afonso Dantas, casado com uma neta do vice-rei, a partir de documentos que estiveram na posse de seu sogro, Manuel Lobo Silveira. Este partira para a Índia em Abril de 1649 e por lá permaneceu até 1708, data da sua morte (Manuel Lobo Silveira saiu de Lisboa em 15 de Abril de 1649 no galeão São Lourenço, que se perdeu quando eram decorridos cerca de seis meses e meio de navegação; a outra nau de sua companhia, a Bom Sucesso, desapareceria a 12 léguas de Moçambique. Com outros companheiros marchou durante dezoito dias com enfadamento e descomodidades até alcançar a fortaleza. Aqui permaneceu um ano até aguardar viagem para Goa, onde chegou a 4 de Outubro de 1650; governava o Estado da Índia Filipe de Mascarenhas, que o casou com Francisca Xavier Morais).
A partir de 1675 procedeu a uma grande recolha de documentos e variadas informações, além de lembranças da sua casa, que ocuparam mais de uma centena de livros manuscritos. Elaborados de forma desorganizada, já que ao mesmo tempo escrevia em differentes livros os mesmos sucessos, com dificuldade se separava o util do inutil. Mas, como entre muita inutilidade havia algumas memórias que poderiam ser úteis a huma verdadeira historia, o vice-rei João Saldanha Gama (1725-1732) ordenou a Luís Afonso Dantas, genro e herdeiro de Manuel Lobo Silveira e em cuja posse estavam os livros, que mandasse tresladar tudo o que fosse de interesse. Estimava-se que a tarefa pudesse estender-se por vários anos de trabalho, não só por haver muito que tresladar, como por ser difficultozo e necessitar de muita aplicação o exame de tudo Na monção de 1727 partiria de Goa o primeiro códice onde, entre outros documentos copiados, constava o presente diário. Ignoramos se o trabalho teve continuidade». In Artur Teodoro Matos, Diário do conde de Sarzedas, Vice-rei do Estado da Índia (1655 -1656), Lisboa, colecção Outras Margens, CNCDPortugueses, 2001, ISBN 972-787-052-X.

Cortesia de CNCDP/JDACT