quarta-feira, 16 de agosto de 2017

As Palavras e as Coisas. Michel Foucault. «Não se sabe donde vem; pode-se supor que, seguindo por incertos corredores, contornou a sala onde as personagens estão reunidas e onde trabalha o pintor; talvez estivesse, há pouco, também ele à frente da cena»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Ora, o nome próprio, nesse jogo, não passa de um artifício: permite mostrar com o dedo, quer dizer, fazer passar sub-recpticiamente do espaço onde se fala para o espaço onde se olha, isto é, ajustá-los comodamente um sobre o outro como se fossem adequados. Mas, se se quiser manter aberta a relação entre a linguagem e o visível, se se quiser falar não de encontro a, mas a partir da sua incompatibilidade, de maneira que se permaneça o mais próximo possível de uma e de outro, é preciso então pôr de parte os nomes próprios e meter-se no infinito da tarefa. É, talvez, por intermédio dessa linguagem nebulosa, anónima, sempre meticulosa e repectitiva, porque demasiado ampla, que a pintura, pouco a pouco, acenderá as suas luzes. É preciso, pois, fingir não saber quem se reflectirá no fundo do espelho e interrogar esse reflexo ao nível da sua existência. De início, ele é o verso da grande tela representada à esquerda. O verso ou, antes, a face dianteira, pois que mostra de frente o que ela, por sua posição, esconde. Ademais, opõe-se à janela e a reforça. Como ela, é um lugar-comum ao quadro e ao que lhe é exterior. A janela, porém, opera pelo movimento contínuo de uma efusão que, da direita para a esquerda, agrega às personagens atentas, ao pintor, ao quadro, o espectáculo que contemplam; já o espelho, por um movimento violento, instantâneo e de pura surpresa, vai buscar, à frente do quadro, aquilo que é olhado mas não visível, a fim de, no extremo da profundidade fictícia, torná-lo visível mas indiferente a todos os olhares. O pontilhado imperioso que está traçado entre o reflexo e o que ele reflecte corta perpendicularmente o fluxo lateral da luz. Enfim, e é a terceira função desse espelho, ele põe em paralelo uma porta que, como ele, se abre na parede do fundo. Também ela recorta um rectângulo claro, cuja luz fosca não se irradia pela sala. Não passaria de uma placa dourada, não estivesse ela aberta para fora através de um batente esculpido, da curva de uma cortina e da sombra de vários degraus. Aí começa um corredor; mas, em vez de se perder em meio à obscuridade, ele se dissipa num brilho amarelo, cuja luz, sem entrar, rodopia em torno de si mesma e repousa. Sobre esse fundo, ao mesmo tempo próximo e sem limite, um homem destaca a sua alta silhueta; ele é visto de perfil; com uma das mãos retém o peso de um cortinado; seus pés estão pousados sobre dois degraus diferentes; tem o joelho dobrado. Talvez vá entrar na sala; talvez se limite a espiar o que se passa no interior, contente de surpreender sem ser observado. Tal como o espelho, fixa o verso da cena: tanto quanto ao espelho, ninguém lhe presta atenção.
Não se sabe donde vem; pode-se supor que, seguindo por incertos corredores, contornou a sala onde as personagens estão reunidas e onde trabalha o pintor; talvez estivesse, há pouco, também ele à frente da cena, na região invisível que é contemplada por todos os olhos do quadro. Como as imagens que se distinguem no fundo do espelho, é possível que ele seja um emissário desse espaço evidente e escondido. Há, no entanto, uma diferença: ele está ali em carne e osso; surgiu de fora, no limiar da área representada; ele é indubitável, não um reflexo provável, mas uma irrupção. O espelho, fazendo ver, para além mesmo dos muros do ateliér, o que se passa à frente do quadro, faz oscilar, na sua dimensão sagital, o interior e o exterior. Com um pé sobre o degrau e o corpo inteiramente de perfil, o visitante ambíguo entra e sai ao mesmo tempo, num balancear imóvel. Ele repete, sem sair do lugar, mas na realidade sombria do seu corpo, o movimento instantâneo das imagens que atravessam a sala, penetram no espelho, nele se reflectem e dele ressaltam como espécies visíveis, novas e idênticas. Pálidas, minúsculas, essas silhuetas no espelho são recusadas pela alta e sólida estatura do homem que surge no vão da porta.
Cumpre, no entanto, retornar do fundo do quadro em direcção à frente da cena; é preciso abandonar esse circuito cuja voluta se acaba de percorrer. Partindo do olhar do pintor que, à esquerda, constitui como que um centro deslocado, distingue-se primeiro o reverso da tela, depois os quadros expostos, com o espelho no centro, a seguir a porta aberta, novos quadros, cuja perspectiva, porém, muito aguda, só deixa ver as molduras na sua densidade, enfim, à extremidade direita a janela, ou, antes, a fenda por onde se derrama a luz. Essa concha em hélice oferece todo o ciclo da representação: o olhar, a palheta e o pincel, a tela inocente de signos (são os instrumentos materiais da representação), os quadros, os reflexos, o homem real (a representação acabada, mas como que afastada dos seus conteúdos ilusórios ou verdadeiros que lhe são justapostos); depois, a representação se dilui: só se vêem as molduras e essa luz que, do exterior, banha os quadros, os quais, contudo, devem em troca reconstituir à sua própria maneira, como se ela viesse de outro lugar, atravessando suas molduras de madeira escura». In Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, 1966, Livraria Martins Fontes Editora, 1981, 2000, ISBN 853-360-997-3.

Cortesia de LMFontesE/JDACT