segunda-feira, 31 de julho de 2017

No 31. A Criança na Sociedade Medieval Portuguesa. Ana Rodrigues Oliveira. «Uma tal medida, que retirava aos progenitores ou aos familiares a exclusiva decisão do futuro conjugal dos respectivos filhos ou parentes, insere-se no conjunto das medidas que os eclesiásticos desenvolveram»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A preocupação evidenciada pela legislação canónica em considerar a especificidade jurídica das crianças nem sempre teve como objectivo a respectiva protecção. De facto, uma parte significativa das normas produzidas nesse contexto destinou-se a proteger os adultos das consequências de uma considerada falta de responsabilidade social e religiosa por parte das crianças, a qual seria tanto mais grave quanto mais jovem elas fossem. Nesse sentido, os canonistas preocuparam-se, sobretudo, em enunciar as incapacidades jurídicas que deveriam atingir os não adultos, com vista à preservação do bom funcionamento das instituições eclesiásticas.
Por um lado, preconizaram a exclusão dos pré-adolescentes de todas as eleições destinadas a escolher responsáveis pelos cargos e funções diocesanas, devendo-se a Bonifácio VIII (1294-1303) a norma canónica que passou a fixar os catorze anos como idade mínima requerida para esse efeito, a qual, de resto, foi depois ampliada por Clemente V (1305-1314), quando exigiu a prévia condição de sub-diácono aos participantes em tais sufrágios, ou seja, nunca antes dos dezoito anos. Por outro lado, os canonistas também começaram a expressar a opinião da necessidade de se restringir às crianças o usufruto directo e imediato de direitos familiares de padroado e de eleição do local de sepultura, visto ambos implicarem um problemático acesso a bens e rendimentos eclesiásticos. Nesse sentido, duas decretais de Bonifácio VIII determinaram que as crianças menores de sete anos apenas poderiam reivindicar a satisfação dos direitos de padroado herdados dos pais por intermédio de uma tutoria juridicamente reconhecida, o mesmo sendo necessário no caso de pretenderem contestar a escolha familiar prévia do seu futuro lugar de sepultura e, nesse caso, apropriar-se dos bens e rendimentos que já tinham sido entregues à instituição religiosa antes designada para esse efeito.
Aliás, a salvaguarda do património eclesiástico relativamente a actos ou decisões tomadas por crianças consideradas muito influenciáveis e sem suficiente discernimento  jurídico também foi objecto das decisões canónicas que impuseram a entrada na adolescentia como condição necessária ao exercício da capacidade de depor ou citar em justiça. No primeiro caso, só aos catorze ou aos doze anos, conforme se tratasse de um rapaz ou de uma rapariga, é que os jovens podiam ser ouvidos em causas cíveis, enquanto para as causas criminais se passou a exigir a idade da passagem da adolescentia para a juventus como limite mínimo para testemunharem em juízo. Reservava-se, contudo, a excepção no caso de não haver qualquer outra possibilidade de prova, de poderem ser ouvidos ainda durante a adolescentia, não sendo porém o seu testemunho prestado sob juramento e funcionando apenas como indício a ter em conta para a resolução da sentença a dar ao crime em julgamento, conforme, aliás, refere, no século XIV, o bispo de Silves, frei Álvaro Pais, no seu Estado e Pranto da Igreja.
Em relação ao segundo caso, acabou por prevalecer o princípio da negação aos infantes de qualquer direito de acusação em justiça, visto, nas palavras do canonista atrás referido, não saberem “o que vêem. De resto, nem durante a adolescentia deveriam as crianças ser consideradas capazes de promover uma acção judicial que visasse matérias temporais, havendo que atingir a juventus para poderem desencadear um litígio que envolvesse a denúncia de delitos situáveis fora da esfera dos bens ou benefícios espirituais, já que só relativamente a esses, entre os quais se incluíam os casos de casamento, entrada na vida religiosa ou direito de padroado, lhes era reconhecido o direito de citar em justiça.
Porém, embora os canonistas da Baixa Idade Média se tenham preocupado com o desenvolvimento de uma legislação orientada para a discriminação negativa dos direitos das crianças, não deixaram de agir em ordem à sua protecção jurídica, tal como sucede em relação aos esponsórios, à sua entrada na vida religiosa e à questão da respectiva responsabilização criminal. No que se refere à primeira matéria, foi com Gregório IX (1227-1241) que se consagrou o princípio da validação jurídica dos esponsórios das crianças prometidas em casamento pelos pais, muitas vezes antes dos sete anos de idade, passando a fazer depender a sua futura transformação num matrimónio do consentimento dos noivos quando chegados à idade da puberdade, salvo no caso da existência de uma união carnal prévia e precoce.
Uma tal medida, que retirava aos progenitores ou aos familiares a exclusiva decisão do futuro conjugal dos respectivos filhos ou parentes, insere-se no conjunto das medidas que os eclesiásticos desenvolveram, desde o século XII, para sacralizar o matrimónio. De facto, é neste contexto que os contratos de casamento deixaram de ser apenas considerados como meros actos de gestão familiar de alianças de parentesco para passarem também a significar decisões religiosas que deviam envolver a concordância e a responsabilização individual dos cristãos que as protagonizavam, não sendo as mesmas concebíveis antes de eles atingirem a puberdade, porque só então poderiam validar ou rejeitar conscenciosamente os compromissos de conjugalidade que haviam sido feitos em sua intenção». In Ana Rodrigues Oliveira, A Criança na Sociedade Medieval Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 2, Nº 2, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT