terça-feira, 11 de julho de 2017

A Virgem e o Cigano. DH Lawrence. «Assim se passaram os meses. Gerry Somercotes continuava a ser um dos seus admiradores. Havia também outros, filhos de agricultores…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Quando entraram, a casa paroquial gelou-lhes os corações. Parecia feia, quase sórdida, com o ar húmido daquele degenerado conforto de classe média, que já deixara de ser confortável e se tornara abafado e sujo. A casa de pedra, rígida, provocou nas raparigas uma violenta impressão de ser suja, sem que elas fossem capazes de dizer porquê. A mobília gasta parecia, de algum modo, sórdida, nada era novo. Até a comida, às refeições, apresentava aquela terrível e lúgubre sordidez que é tão repulsiva aos jovens chegados do estrangeiro. Carne assada, couve cozida, carneiro frio e puré de batatas, picles avinagrados e os pudins incríveis.
A avó, que adorava um bocado de carne de porco, tinha também pratos especiais, caldo de carne e biscoitos, ou um louco de creme especialmente saboroso. A tia Cissie, de cara triste, não comia. Sentava-se à mesa e punha no prato uma única solitária e nua batata cozida. Nunca comia carne. Assim, sentava-se à mesa todo o tempo que a refeição durava em reclusão sórdida, enquanto a avó engolia rapidamente o seu bocado e só com muita sorte não entornava nada por cima do seu estômago protuberante. A comida, já por si, era pouco apetitosa: como é que o poderia ser, quando a tia Cissie odiava comida, odiava o facto de se comer e nunca conseguia manter uma criada durante mais de três meses! As raparigas comiam com repulsa, Lucilie aguentando com bravura, enquanto o delicado nariz de Yvette demonstrava claramente a sua repugnância. Apenas o pároco, de cabelos brancos, limpava os longos bigodes grisalhos com o guardanapo e dizia piadas. Também ele começava a ficar pesado e lento, passava todo o dia sentado no seu gabinete, sem nunca fazer qualquer exercício. Porém, estava todo o tempo a soltar piadinhas sarcásticas, ali sentado sob a protecção da Mater.
A região, com as suas colinas íngremes e vales profundos e estreitos, era sombria e triste, mas tinha, em contrapartida, uma certa força, muito sua. A vinte milhas dali encontrava-se a mancha negra do industrialismo setentrional, mas, no entanto, a vila de Papplewick, em comparação, dir-se-ia isolada, quase perdida, e nela decorria uma vida pétrea e rígida. Tudo era pedra, pedra de uma dureza que era quase poética, e de uma tal austeridade! Era tudo tal como as raparigas tinham previsto: regressaram ao coro, ajudavam na paróquia. Mas Yvette recusou-se terminantemente a participar na Escola Dominical, na Banda da Esperança e na Sociedade Feminina de Socorro Mútuo, ou seja, manifestou-se contra todas aquelas funções que eram dirigidas por velhas solteironas cheias de determinação e por velhotes estúpidos e obstinados. Evitava o mais possível os serviços da igreja e sempre que podia escapulia-se da paróquia. Os Framleys, uma familia enorme, desordenada e divertida que vivia lá em cima na granja, eram uma grande ajuda. Se alguém a convidava para uma refeição, ou até se uma mulher, numa das casas dos operários, lhe pedia que ficasse para o chá, ela aceitava imediatamente. Na verdade, ficava encantada. Gostava de falar com os trabalhadores, pois tinham, frequentemente, umas cabeças belas e sólidas. Mas, claro, eles pertenciam a um outro mundo.
Assim se passaram os meses. Gerry Somercotes continuava a ser um dos seus admiradores. Havia também outros, filhos de agricultores ou de proprietários de moagens. Na realidade, Yvette devia ter passado um tempo agradável. Estava sempre a sair para festas e bailes, os amigos iam buscá-la, nos seus automóveis, e aí iam eles para a cidade, para as matinées dançantes, no hotel principal ou no novo e maravilhoso Palais de Danse, a que chamavam o Pally. No entanto, ela parecia sempre uma criatura hipnotizada. Nunca se sentia suficientemente livre para ser feliz. Algures, dentro de si própria, permanecia uma irritação intolerável que ela pensava que não devia sentir, e que odiava sentir, o que ainda tornava tudo pior. Nunca conseguiu compreender qual a sua causa. Em casa, mostrava-se na verdade impaciente e imutável e ultrajosamente rude para com a tia Cissie. De facto, o terrível temperamento de Yvette tornou-se, dentro da família, um dado adquirido». In DH Lawrence, A Virgem e o Cigano, 1926, Editora Assírio & Alvim, 1984, colecção O Imaginário, ISBN 978-972-370-164-7.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT