sexta-feira, 26 de maio de 2017

Vera Cruz. João Morgado. «À sua volta todos franziam igualmente o sobrolho, pouco crentes na grandiosidade de um reino que se fazia representar por um barbudo porco e nauseabundo»

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«(…) Houve um alarido tremendo na costa e nas águas. A gentiaga acorreu à beira-mar e alguns mais afoitos foram de almadias até às novas embarcações, uns por curiosidade, outros mais arrojados a tentar escambo com os estranhos que pareciam de bolsa farta. Mas aqueles homens de além-mar tinham carrancas barbudas que davam mostras de pouca amizade. Só uns tantos saíram a terra. Degredados de pouca valia, gente ruim por quem ninguém verteria uma lágrima e outros tantos homens de armas. Saiu também Fernão Martins, que era o língua da armada, um homem de muitos falares. Ficaram deslumbrados com aquele estranho povo, uns escanzelados de barbas brancas e poucas vestes, outros anafados e de bons panos coloridos. Gente muito variada e muitos animais exóticos. Pelos adentros das narinas entrava um cheiro adocicado que indicava as praças de mercadores de especiarias. Os portugueses sorriram, mas por pouco tempo, pois a mourama era belicosa e as escaramuças aumentavam a olhos vistos. Depois de muito cruzar lâminas e injúrias, Fernão Martins lá encontrou um árabe que era mais senhor de falas que de espadas. E arabiando os dois, lá se entenderam e assim convenceram o dito a subir a bordo para falar com o capitão-mor. Sou Vasco da Gama, dizei ao samorim que quero falar-lhe. Trago uma missiva do meu rei e senhor, Manuel I, rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d’Além-Mar em Africa.
Moçaide, o árabe, era homem viajado. Tinha navegado no Mediterrâneo e conhecia a fama dos portugueses. No seu arengar meio-genovês, meio-castelhano, agradeceu as mordomias recebidas e prometeu ser célere em marcar audiência com o soberano daquelas terras. Mas o sultão era homem acautelado e, não sabendo dos intuitos daqueles forasteiros, tinha pegado no seu séquito e partido para um outro palácio, lá no anteparo da floresta, distante dos mares e do poder de fogo de tal gente. Por isso demorou tempo a resposta do soberano e muito tardou também a viagem dos portugueses pelo matagal adentro, sob um sol que matava e uma humidade que fazia gotejar os corpos; as fatiotas tiradas da arca húmida para tão especial ocasião estavam já encharcadas de um suor fétido. Os portugueses seguiram transportados em liteiras, mas sempre nervosos e desconfiados dos beberes e das poucas comidas que lhes eram dados. Só quando chegaram ao seu destino tudo esqueceram e abriram a boca num espanto sem fim, tinham chegado à terra dos seus devaneios. Por certo, nem em sonhos tinham estado num tão luxurioso lugar.
Todo o palácio era uma ilha de tesouros, nunca os portugueses tinham visto tal coisa: o debuxo ornamentado do edifício; os adornos de pedraria; o sem-fim de guerreiros e serviçais; um ror de gente coberta de sedas e pedras preciosas. Caminharam pelo palácio adentro em passo firme, orgulhosos, mas os presentes torciam o rosto e levavam lenços ao nariz. Uns serviçais foram borrifá-los com uns líquidos. Água benta por certo, devem ser cristãos, comentou Gama, escarrando no chão. Mas na realidade era perfume, pois o odor a esterco e suor estava-lhes apegado ao corpo. Por contraste, o samorim Manavikraman Rajá, homem de muitos anos, estava estirado num dossel bordado a ouro e reclinado em grande soma de almofadas cor de pérola. Convidou Gama a sentar-se e brindou a comitiva com fruta e beberagens frescas. Gama discorreu então sobre o reino de Portugal e seus egrégios antepassados, o seu poderio militar e económico, o seu agigantar nas aventuras do mar tenebroso. Fazia questão que das suas palavras emergisse a grandeza impressionante de um reino que a todos desse o mesmo pensar, melhor o ter por afeiçoado que por desavindo. O samorim ouvia a tradução das línguas mas não largava o lenço aromatizado sobre o nariz; desesperava com tal gente e mostrava cara de enfado. À sua volta todos franziam igualmente o sobrolho, pouco crentes na grandiosidade de um reino que se fazia representar por um barbudo porco e nauseabundo.
Vasco da Gama sentia que o ambiente lhe era adverso, por isso lhe tremiam os termos e as ideias, o que maior desagrado causava entre os presentes,- não dizia iá coisa com coisa. Aquela era gente perfumada, de corpo depilado e pele tratada, carregada de jóias e sedas coloridas. Em toda a volta tudo era primor e riqueza, deslumbre e opulência. Só aquela gente que escarrava no chão parecia saída da imundície. Por isso lhe pediam que falasse com as mãos sobre a boca, para que o hálito não emporcasse mais ainda aquele ambiente luzidio.
Vasco da Gama sentia que tudo revoluteava à sua volta, como se estivesse ainda no cabo tormentoso onde a morte tinha chamado por ele. E se a água o não tinha tragado, sentia agora que este povinho efeminado e senhoril o queria esmagar com uma vaga de desprezo. Temeu então que se perdesse o encargo que o rei Manuel I lhe confiara. Não posso malograr esta missão, repetia de si para si mesmo. O futuro do reino está nas minhas mãos, não posso falhar». In João Morgado, Vera Cruz, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-207-6.

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