domingo, 28 de maio de 2017

Papas. Imperadores e Hereges na Idade Média. José D’Assunção Barros. «A polémica em torno da ideia de decadência aplicada à transição entre os períodos antigo e medieval é, como nos poderiam mostrar outros autores, bastante problemática»

jdact e wikipedia

«(…) Neste sentido, é de lembrar que já remonta aos próprios tempos antigos a diversidade de leituras estabelecidas em torno dos marcos históricos que foram pressentidos pelos próprios antigos como sinais do fim de todo um período. Assim, enquanto alguns autores pagãos, particularmente tomados por uma visão pessimista, tenderam a encarar o saque de 410 sob a perspectiva de um acontecimento que sinaliza uma decadência que havia fragilizado o Império e possibilitado o saque de Alarico, já será outra a visão de Paolo Orósio (c. 385- c. 420), autor da primeira história universal escrita por um cristão e entretecedor de uma avaliação dos acontecimentos históricos onde cada aspecto ou acontecimento é medido em função da sua aproximação ou afastamento em relação ao cristianismo. Para Orósio, o saque visigodo do ano de 410 é positivado simultaneamente como demonstração do juízo de Deus e como anúncio de uma nova era que estaria por vir, acrescentando-se ainda a ênfase numa leitura sobre Alarico como visigodo convertido que desfecha um golpe fatal sobre a Roma pagã. Este tipo de leitura divinizante da história, aliás, onde cada acontecimento (seja este um sucesso ou uma catástrofe) fala directamente de Deus e de uma relação dos actores humanos com Ele, que pode no caso ser punida ou premiada, seria prontamente incorporada na Idade Média.
Os embates em torno da perspectiva da decadência do Império Romano já afloram, portanto, na própria época de desarticulação do mesmo. Em vista disso, amparando-se numa cuidadosa análise historiográfica sobre a apropriação e reapropriações desta noção carregada de sentido valorativo, Santo Mazzarino procura ressaltar os problemas de utilização da noção de decadência pela moderna historiografia, e sua recomendação taxativa é a de rejeitar a compreensão da Antiguidade Tardia como um período de decadência.
A polémica em torno da ideia de decadência aplicada à transição entre os períodos antigo e medieval é, como nos poderiam mostrar outros autores, bastante problemática. Por fim, veremos oportunamente, ao lado das ideias de declínio, queda e decadência, outros conceitos que têm sido propostos pela historiografia recente, incluindo o de desagregação, todos com implicações mais específicas para o estudo do último período do Império Romano.

Novos campos historiográficos e novas leituras da passagem
Por ora, consideraremos que os desenvolvimentos modernos da historiografia sobre a passagem da Antiguidade à Idade Média correspondem precisamente à superação desta dicotomia que, apesar de gerada por posições aparentemente inconciliáveis, o assassinato ou a morte natural do Império, trazem como pano de fundo um mesmo posicionamento historiográfico francamente baseado nos acontecimentos políticos em nível institucional. Com o desenvolvimento da historiografia do século XX, o olhar dos historiadores vai como que se desatrelando desta exclusividade em relação à história política de âmbito institucional, e cada vez mais novas dimensões vão sendo colocadas em cena como questões centrais passíveis de serem examinadas. Economia, cultura, mentalidades, imaginário, demografia, a afirmação de novas especialidades da história voltadas para o diálogo com estas dimensões fundamentais permite que um mesmo conjunto de acontecimentos seja beneficiado por diversificadas cronologias que dependerão do problema a ser examinado pelo historiador.
Os estudos de análise histórica de populações, por exemplo, ao instituírem a partir de meados do século XX um novo campo histórico a ser definido como história demográfica, rechaçam por princípio a antiga maneira historiográfica de apodar de invasões bárbaras ao fenómeno do adentramento do Império Romano por povos diversos. Nem invasões e nem bárbaras, aliás, pois duplamente tem sido revista esta antiga maneira de interpretar o movimento de gentes que iria transformar tão completamente a face do Império Romano». In José D’Assunção Barros, Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média, Editora Vozes, 2012, ISBN 978-853-264-454-1.

Cortesia EVozes/JDACT