segunda-feira, 1 de maio de 2017

O Homem de Constantinopla. José Rodrigues Santos. «De repente, como por encanto, ou talvez graças a um desconcertante passe de ilusionismo, os acontecimentos aceleram e tudo se precipita»

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«Nenhum ser humano esquece o dia em que o pai morreu.
Dizem que é o momento em que nos tornamos adultos e o futuro nos é confiado como a chave de uma mansão de que somos enfim herdeiros. Fingimos que assumimos a vida como senhores do nosso destino, mas a orfandade nada nos oferece a não ser a solidão dos que se descobrem entregues à sua sorte. Vivi essa tragédia pessoal numa jornada estranha, uma daquelas tardes em que tudo parece suceder ao mesmo tem o, como se Deus jogasse com a nossa desgraça tirando-nos com uma mão o que nos dá com a outra. A vida tem, aliás, destas coisas. Tropeçamos nos anos como se estivéssemos anestesiados, não passamos de sonâmbulos a vaguear por um sonho cujos contornos mal discernimos, perdidos num labirinto tecido pelos mistérios que assombram os caminhos abertos diante de nós. De repente, como por encanto, ou talvez graças a um desconcertante passe de ilusionismo, os acontecimentos aceleram e tudo se precipita. Foi o que se passou naquele dia em que entrei no hotel, um estabelecimento de luxo instalado num palacete perdido nos confins ocidentais da Europa. Franqueei o átrio como um animal acossado, ansioso e deprimido, vergado pelo futuro que intuía incerto. A viagem para Lisboa havia sido cansativa e quando por fim me deixei cair no sofá, depois de falar com o médico e de ir ao primeiro andar espreitar o meu pai moribundo, fiquei com a impressão de que já não seria capaz de me levantar, tão macias achei as almofadas e tão fatigado me sentia. Olhei em volta e respirei o ambiente sereno do hotel. O grande salão estava finamente decorado, como sempre, mas o que mais me encantou, admito, foi o tapete fofo no qual os meus pés se afundavam com infinito deleite.
Enquanto saboreava o whisky com gelo que fui buscar ao bar para me forçar a descontrair, deixei a mente vagabundear pelos acontecimentos das últimas vinte e quatro horas. Tudo começara quando me chegou o telegrama com as notícias do colapso que o meu pai tinha sofrido em Lisboa. Apesar de estar plenamente consciente de que, com aquela idade, qual­quer situação do género poderia ocorrer a todo o momento, foi como se alguém me tivesse despertado com uma bofetada. Uma coisa é pensarmos em abstracto na possibilidade de isto acontecer, outra é algo assim suceder de facto. Descobrimos nesse instante que nunca estamos realmente preparados.
O que se passou a seguir à chegada da notícia transformara-se já numa amálgama confusa de pedaços de imagens que flutuavam caoticamente na minha memória, como folhas secas que o vento do Outono atirava em sucessivos remoinhos pelo ar. Lembro-me vagamente de ir a Piccadilly comprar à pressa um bilhete da BOAC, depois a corrida desenfreada no meu Morgan até ao aeródromo de Croydon, o interminável voo de seis horas sobre o Atlântico, a aterragem aos solavancos do De Havilland na pista de Lisboa, as cores das casas que a luz límpida da cidade tornava alegremente garridas, os rostos apreensivos que me acolheram no Aviz, a placidez vertida pela face impassível do meu pai no momento em que o vi estendido na cama. Estava a morrer e parecia dormitar.
Uma mão amiga apertou-me o ombro, trazendo-me de volta ao salão do hotel. Alors, mon cheri?, perguntou-me a voz feminina num tom maternal. T'es bien? Virei a cabeça e reconheci o vulto alquebrado de madame Duprés. Tinha o olhar cansado de quem não dormia havia alguns dias e dava a impressão de que envelhecera consideravelmente desde que com ela me cruzara pela última vez, uns três anos antes. Seria da fadiga ou do choque? A verdade é que a senhora contava mais de oitenta anos, pelo que a única verdadeira surpresa deveria ser a energia que a animou até tão avançada idade. Qualquer que fosse a sua fonte, todavia, a vitalidade manifestamente apagara-se e dela apenas sobrava um clarão difuso, como o hálito do sol no langor moribundo do crepúsculo.
Ainda não estou em mim, confessei. Alguma novidade? A velha francesa abanou a cabeça, os olhos a pestanejarem com uma tristeza prenhe de resignação. Infelizmente não. Madame Duprés acomodou-se numa chaise longue ao meu lado, os gestos suaves e melancólicos, o corpo aterradoramente frágil. Parecia um espectro prestes a quebrar-se. Ele alguma vez recuperou a consciência? De início sim. O doutor disse-me que se trata de um tipo raro de coma, como se a consciência fosse sucessivamente ligada e desligada. Mas os momentos em que está desperto são cada vez mais raros, curtos e espaçados. O olhar dela pousou em mim e pareceu acender-se por momentos, como a chama mortiça de uma vela que desperta ao sabor de uma aragem súbita. Por isso, se ele acordar outra vez, aproveita.
Aproveita cada segundo, frui cada palavra, guarda cada olhar. Poderá não haver outra oportunidade, entendeste? Assenti com a cabeça, perfeitamente consciente de que, se voltasse a falar com o meu pai, seria decerto para lhe dizer adeus. O médico português já me tinha aliás dado conta da gravidade da situação, sublinhando que a questão se encontrava para além dos conhecimentos da medicina. Se nutria ainda algumas ilusões quanto ao verdadeiro estado em que ele se encontrava, perdi-as por completo nessa conversa. Nos últimos tempos, perguntei de repente, ele falou de mim?
Madame Duprés abanou a cabeça. Como sabes, o teu pai não era muito expansivo, murmurou de olhos submissos. Mas não tenhas dúvidas de que a vossa zanga o deixou muito abatido. Nunca mais foi o mesmo. O era que ela utilizou para se referir a meu pai soou-me amargamente a requiem antecipado; dava a impressão de que já tinha desistido dele e se resignara ao inevitável. A pessoa mais afectada, talvez por ter vivido de perto toda a situação, era de facto madame Duprés. Apesar de ser eu o filho, dei comigo a tentar consolá-la e a fazer-lhe ver que a vida é uma viagem com ponto de partida e de chegada. O meu pai estava no fim do caminho, tínhamos de nos preparar e aceitar o inevitável desenlace. Ela chorou ali ao lado de mim, em pleno salão do Aviz, os pés afundados naquele tapete fofo, as mãos a taparem o rosto molhado de lágrimas. Não me envergonho de dizer que chorei também». In José Rodrigues Santos, O Homem de Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN 978-989-616-549-9.
Cortesia de EGradiva/JDACT