sábado, 6 de maio de 2017

O bispo Negro (1130). Alexandre Herculano. «Toda a narrativa das circunstâncias que se deram no facto, aliás verdadeiro, da prisão de dona Teresa…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Os dois fidalgos esporearam com mais força os ginetes, e breve alcançaram o infante. Senhor, senhor; aonde ides sem vossos leais cavaleiros, tão cedo e açodadamente? Vou pedir ao legado do papa que se amerceie de mim... A estas palavras, os cavaleiros transpunham uma assomada que encobria o caminho: pela encosta abaixo ia o cardeal com os dois mancebos das opas e cabelos tonsurados. Oh!...,  disse o príncipe. Esta única interjeição lhe fugiu da boca; mas que discurso houvera aí que a igualasse? Era o rugido de prazer do tigre, no momento em que salta do fojo sobre a preia descuidada. Memento mei, Domine, secundum magnam misericordiam tuam!, rezou o cardeal em voz baixa e trémula, quando, ouvindo o tropear dos cavalos, voltou os olhos e conheceu Afonso Henriques.
Em um instante este o havia alcançado. Ao perpassar por ele, travou-lhe do cabeção do vestido e, de relance, ergueu o monante: felizmente os dois cavaleiros arrancaram as espadas e cruzaram-nas debaixo do golpe, que já descia sobre a cabeça do legado. Os três ferros feriram fogo; mas a pancada deu em vão, aliás o crânio do pobre clérico teria ido fazer mais de quadro redemoinhos nos ares. Senhor, que vos perdeis e nos perdeis, ferindo o ungido de Deus, gritaram os dois fidalgos, com vozes aflitas.
Príncipe, disse o velho, chorando, não me faças mal; que estou à tua mercê! Os dois mancebos também choravam. Afonso Henriques deixou descair o montante, e ficou em silêncio alguns momentos. Estás à minha mercê?, disse ele por fim. Pois bem! Viverás, se desfizeres o mal que causaste. Que seja alevantada a excomunhão lançada sobre Coimbra, e jura-me, em nome do apostólico, que nunca mais em meus dias será posto interdito nesta terra portuguesa, conquistada aos Mouros por preço de tanto sangue. Em reféns deste pacto ficarão teus sobrinhos. Se, no fim de quatro meses, de Roma não vierem letras de bênção, tem tu por certo que as cabeças lhes voarão de cima dos ombros. Apraz-te este contrato?
Sim, sim!, respondeu o legado com voz sumida. Juras? Juro. Mancebos, acompanhai-me. Dizendo isto, o infante fez um aceno aos sobrinhos do legado, que, com muitas lágrimas, se despediu deles, e sòzinho seguiu o caminho da terra de Santa Maria. Daí a quatro meses,don Çoleima dizia missa pontifical na capela-mor da Sé de Coimbra, e os sinos da cidade repicavam alegremente. Tinham chegado letras de bênção de Roma; e os sobrinhos do cardeal, montados em boas mulas, iam cantando devotamente pelo caminho da Vimieira o salmo que começa: In exitu Israel de AEgypto. Conta-se, todavia, que o papa levara a mal, no princípio, o pacto feito pelo legado; mas que, por fim, tivera dó do pobre velho, que muitas vezes lhe dizia: se tu, santo padre, viras sobre ti um cavaleiro tão bravo ter-te pelo cabeção, e a espada nua para te cortar a cabeça, e seu cavalo, tão feroz, arranhar a terra, que já te fazia a cova para ter enterrar, não somente deras as letras, mas também o papado e a cadeira apostolical.

Nota: A lenda precedente é tirada das crónicas de Acenheiro, rol de mentiras e disparates publicado pela nossa Academia, que teria procedido mais judiciosamente em deixá-las no pó das bibliotecas, onde haviam jazido em paz por quase três séculos. A mesma lenda tinha sido inserida pouco anteriormente na crónica de Afonso Henriques por Duarte Galvão, formando a substância de quatro capítulos, que foram suprimidos na edição deste autor, e que mereceram da parte do académico Francisco S. Luís uma grave refutação. Toda a narrativa das circunstâncias que se deram no facto, aliás verdadeiro, da prisão de dona Teresa, das tentativas oposicionistas do bispo de Coimbra, da eleição do bispo negro, da vinda do cardeal, e da sua fuga contrastam a história daquela época. A tradição é falsa a todas as luzes; mas também é certo que ela se originou de alguma acto de violência praticado nesse reinado contra algum cardeal legado. Um historiador coevo e, posto que estrangeiro, bem informado geralmente acerca dos sucessos do nosso país, o inglês Rogério Hoveden, narra um facto, acontecido em Portugal, que, pela analogia que tem com o conto do bispo negro, mostra a origem da fábula. A narrativa do cronista está indicando que o acontecimento fizera certo ruído na Europa, e a própria confusão de datas e de indivíduos que aparece no texto de Hoveden mostra que o sucesso era anterior e andava já alterado na tradição. O que é certo é que o achar-se esta conservada fora de Portugal desde o século duodécimo por um escritor que Ruy Pina e Acenheiro não leram (porque foi publicado no século décimo sétimo) prova que ela remonta entre nós, por maioria de razão, também ao século duodécimo, embora alterada, como já a vemos no cronista inglês. Eis a notável passagem a que aludimos, e que se lê a página 640 da edição de Hoveden, por Savile: No mesmo ano (1187) o cardeal Jacinto, então legado em toda a Espanha, depôs muitos prelados (abbates), ou por culpas deles ou por ímpeto próprio, e como quisesse depor o bispo de Coimbra, o rei Afonso (Henrique) não consentiu que ele fosse deposto e mandou ao dito cardeal que saísse da sua terra, quando não cortar-lhe-ia um pé». In Alexandre Herculano. O Bispo Negro (1130) e Arras por Foro de Espanha, 1851, Livraria Bertrand, Editorial Verbo, Biblioteca Básica Verbo, 1971.

Cortesia de Lbertrand/Everbo/JDACT