quinta-feira, 4 de maio de 2017

A Primeira Crónica Portuguesa. José Mattoso. «A imagem do rei rodeado dos seus vassalos, quase como chefe de um bando armado, concorda perfeitamente com o que sabemos do grupo de cavaleiros de Coimbra, que constituiu o núcleo duro»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Mas não basta a classificação deste texto para desprezar o problema da sua origem. Com efeito, nem todos os argumentos de Filipe Moreira para o secundarizar me parecem justos. As reminiscências das lutas entre clero de simpatia ou origem moçárabe contra o clero de observância romana, institucionalmente prolongadas pelas violentas controvérsias entre a comunidade de Santa Cruz, simpatizante do primeiro, e os cónegos da Sé, representantes do segundo, criaram em Coimbra um ambiente que não é lícito ignorar se se pretende conhecer o sentido do episódio. Todavia, o teor da estória tal como é relatada na Primeira Crónica Portuguesa (não hesito em adoptar este título) manifesta uma origem não clerical; o seu autor não parece conhecer suficientemente as instituições eclesiásticas para utilizar o vocabulário adequado, e interpreta o conflito dando um sentido simbólico aos pormenores escolhidos. Mas seria um anacronismo atribuir-lhe um pensamento anticlerical. Neste ponto discordo por completo da opinião de Filipe Moreira. O papel negativo cabe ao papa e aos seus representantes; não ao clero português ou coimbrão no seu conjunto. Também não me parece de modo algum que a escolha desta narrativa se destine, na mente do redactor, a completar uma definição da autoridade do rei para com a primeira das três ordens. Com efeito, na opinião de Filipe Moreira, depois do episódio em que Henrique, moribundo, recomenda ao filho que seja companheiro a filhos d’algo e faça honra aos concelhos, fora definida a sua autoridade para com a segunda e a terceira das três ordens; faltaria marcar a sua supremacia para com o clero. Acontece, porém, que não consigo descobrir nenhum vestígio de tipo redactorial para sustentar tal tese. Pelo contrário: se não me parece haver dúvida que o papel do rei para com os nobres e os concelhos, tal como é definido no princípio da primeira sequência, se inspira no princípio de que deve haver uma verdadeira partilha de funções e um exercício do poder condicionado pelos privilégios dos nobres e a autonomia relativa dos concelhos (e não numa autoridade absoluta do rei sobre eles), já o relato do seu comportamento para com o clero tem um sentido muito diferente. Com efeito, o narrador, atribui a Afonso a plena autoridade (isto é exercida sem prévia consulta dos representantes da primeira ordem) sobre a escolha do bispo, e não hesita em ameaçar de morte o legado papal, reclamando assim uma posição acima do próprio papa. Não há, pois, nenhum paralelismo entre o sentido da primeira sequência do texto e o sentido da terceira. O conceito de poder régio é completamente diferente nas duas secções do texto. Para mim é, pois, evidente que a Crónica se baseou em narrativas diferentes e procedentes de meios socais distintos.
A meu ver, a tese da coerência global do texto, defendida por Filipe Moreira, devia-se basear prevalentemente em argumentos formais e textuais. Neste sentido, façamos um pequeno exercício quantitativo. Reparemos que a primeira sequência (morte de don Henrique) tem 34 linhas; a segunda (conflito com a mãe e o imperador), 53; a terceira (bispo Negro), 72; e a quarta (Badajoz), 21 (sem contar com a secção de carácter analístico, com 21 linhas). É evidente a extensão francamente maior da terceira. Ora é precisamente aquela que mais claramente constitui uma verdadeira estória. Este carácter pode-se também atribuir à narrativa da luta com a mãe, mas a sua extensão é menor. Todavia, o redactor atribui a esta, e não àquela, a função de comandar a intriga envolvente, pois é ela que liga entre si os episódios de S. Mamede, da luta com o Imperador, da derrota de Badajoz, e até da intervenção do legado papal. Se há alguma unidade no texto ela inspira-se no conflito entre Afonso e sua mãe. De facto, textualmente falando, os elementos de ligação existem. Mas, entre a segunda e a terceira sequência, a fórmula usada pelo redactor é de tal modo tosca que não se pode ignorar o seu carácter artificial: e despois ouve batalha em nos quampos d’Ourique e venceo-a. E dês ally em diante se chamou el rey dom Affonso de Portugal. E o apostólico ouvio dizer como prendera sa madre, e que a trazia consigo presa. A esta observação pode-se acrescentar o carácter conclusivo da fórmula que encerra a terceira sequência, como se fosse um texto autónomo: e en todos seus dias nem huum nom fez al em toda sa terra senom o que ell quis.
Em tempos sustentei que o meio social onde, segundo os conhecimentos históricos actuais, seria lógico (acentue-se este qualificativo) situar o nascimento da história do bispo Negro seria no meio dos cavaleiros de Coimbra. Aquele mesmo onde, também hipoteticamente, teria sido redigida a narrativa latina da conquista de Santarém. Depois de eu ter sugerido tal aproximação, a minha hipótese viria a ser de certo modo confirmada e aprofundada pelas objectivas investigações da professora Leontina Ventura acerca dos contornos e evolução desse mesmo grupo social. A existência de um grupo de cavaleiros que teriam sido os fiéis auxiliares de Afonso Henriques nas expedições que conduziu entre 1135 e 1169, cujos sucessores formaram um grupo ligado por afinidades de parentesco, sedeado em Coimbra e nas regiões mais próximas, embora não possa ser demonstrada de uma forma apodíctica, apoia-se em vários indícios concretos e concordantes. Creio que se lhe pode atribuir consistência suficiente para o propor também para explicar o que há de típico na história do bispo Negro, incluindo as reminiscências do conflito em torno do ritual moçárabe, prolongado pelos ódios que a intervenção papal desencadeou no conflito entre a Sé de Coimbra e o mosteiro de Santa Cruz. Em termos textuais, esta hipótese apoia-se na maneira como a narrativa relata a intervenção dos vassalos que anunciam ao rei a fuga do cardeal quando ele se levanta de manhã, e a intervenção dos quatro cavaleiros que em Vimieiro o aconselham a não o decapitar. Em nenhuma outra fonte medieval, exceptuando a da conquista de Santarém (com origem semelhante), aparece tão bem delineada a relação que se teria estabelecido entre Afonso Henriques e os seus apoiantes mais fiéis. A imagem do rei rodeado dos seus vassalos, quase como chefe de um bando armado, concorda perfeitamente com o que sabemos do grupo de cavaleiros de Coimbra, que constituiu o núcleo duro da corte afonsina até ao desastre de Badajoz. Na narrativa, porém, o comportamento de Afonso aparece já transfigurado pela distância de uma memória de duas ou três gerações». In José Mattoso, A Primeira Crónica Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 5, Nº 6, Julho de 2009, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT