quinta-feira, 4 de maio de 2017

A Primeira Crónica Portuguesa. José Mattoso. «… hesita em manter a designação de “amo” atribuída pela Crónica de Veinte Reyes a Soeiro Mendes»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Os cavaleiros de Coimbra constituem, porém, um grupo diferente do meio linhagístico do Norte, a que pertenciam os magnates da corte e os ricos homens governadores das principais terras, de tradições independentes e mais antigas. Neste, cultivar-se-iam, pelo contrário, sentimentos de rivalidade que suscitaram pequenas narrativas depreciativas para com Afonso Henriques, também com inegáveis resultados textuais preservados pelos Livros de Linhagens, mas que não deixaram qualquer vestígio na Primeira Crónica, a não ser, na minha opinião, sob a forma moderada que revestiram as palavras de Soeiro Mendes entre a primeira e a segunda fase da batalha de S. Mamede. Apesar de interpretáveis, na opinião de Filipe Moreira, como palavras de um adjuvante do herói, não me parece que se possa ignorar o evidente tom de censura que a Crónica Portuguesa lhe atribui: nom fezestes sisso que aa batalha fostes sem mim. Custa-me a crer que um algum escriba da corte de Afonso III se lembrasse de as escrever numa obra destinada a exaltar a autoridade régia, se não as tivesse antes lido ou ouvido em algum lado.
Que o redactor não ignorava as reservas e resistências suscitadas contra Afonso Henriques por alguns sectores do reino, é o que se verifica, com toda a clareza, através das palavras com que, aparentemente, deveria terminar, numa certa fase do seu trabalho, o texto sobre o seu reinado: e em como foi da primeira muy esquivo asi tornou despois pela graça de Deus a ser muyto a serviço de Deus, qua em seu tempo, quando era mancebo, non conhicia tanto Deus nem sabia que era. Se não é difícil aceitar a tese de uma versão de tipo cronístico a que um autor único teria procurado dar forma coerente, de certo modo preservada pelo seu estado actual, não parece razoável ignorar o interesse de um trabalho mais arqueológico que consiste em identificar a origem de várias narrativas, sobretudo no caso de indiciarem posições contraditórias de diferentes grupos sociais, como acontece justamente neste caso.
Vejamos as outras sequências. A relativa autonomia das duas primeiras é menos evidente do que a do Bispo Negro. Além do que acabamos de dizer acerca da possível origem do episódio da intervenção de Soeiro Mendes em S. Mamede, acrescentemos que não se pode ignorar que a época em que Filipe Moreira situa a redacção da Primeira Crónica, o fim do reinado de Afonso III ou o principio do de Dinis I, coincide exactamente com aquela em que se avolumam as resistências aristocráticas ao cerceamento dos privilégios senhoriais, e começam a surgir textos que exprimem o dever que o rei tem de reconhecer o que deve às linhagens pela conquista do reino. Assim acontece, por exemplo, no prólogo do Livro Velho de Linhagens. O seu autor, conta os linhagens dos bons homens filhos d’algo do reino de Portugal dos que devem a armar e criar e que andaram a la guerra a filhar o reino de Portugal. Na mesma ordem de ideias, o conde Pedro apesar de tão próximo do rei, ao apresentar as razões que o levaram a reunir as suas genealogias, diz, em quinto lugar, por os rreys auerem de conhecer aos uiuos com merçees por os merecimentos e trabalhos e gramdes lazeiras que rreçeberom os seus auoos em se guaanhar esta terra de Espanha per elles.
O tópico haveria de se manter e exprimir durante muito tempo. Continuava a ser ideologicamente fundamental basear a reivindicação dos direitos senhoriais na colaboração que as linhagens mais antigas tinham prestado ao rei na conquista do território aos mouros. Como se sabe, as tensões entre a coroa e a nobreza senhorial não cessam de crescer até rebentar a guerra civil de 1319-1325. A conexão destas rivalidades com as anedotas depreciativas para com Afonso Henriques registadas pelos Livros de Linhagens é fundamental para esclarecer o aparecimento e a transmissão de narrativas breves mais ou menos isoladas umas das outras mas de inegável valor ideológico. A comparação deste género literário com o género cronístico só pode enriquecer o conhecimento dos fenómenos de criação literária medieval. Não vejo, pois, nenhuma razão para ignorar ou desprezar as minhas investigações nesse sentido.
Com efeito, é importante ter em conta o ambiente de rivalidade entre o rei e as linhagens mais importantes para compreender o alcance da criação de uma narrativa cronística destinada (aceitemos a tese de Filipe Moreira) a exaltar a memória dos reis antecedentes, sobretudo o primeiro deles. Mas o facto de os materiais usados nem sempre lhe serem favoráveis torna ainda mais interessante o resultado. Com efeito, dir-se-ia que o redactor, não podendo, ou não querendo, excluir tradições contraditórias acerca de Afonso Henriques, acaba por mostrá-lo como personagem marcado pela ambiguidade. Em primeiro lugar, na narrativa da batalha de S. Mamede, acentua, como vimos, o decisivo apoio das linhagens e o papel de adjuvante de Soeiro Mendes (hesita em manter a designação de amo atribuída pela Crónica de Veinte Reyes a Soeiro Mendes, ausente da IV Crónica Breve e do Livro de Linhagens, mas acaba por omiti-la; o problema prende-se com a lenda de Egas Moniz que noutro trabalho considerei como criação do trovador João Soares Coelho, para esquecer a sua origem de uma linha bastarda e justificar a sua ascensão na corte de Afonso III; seja como for, a dualidade dos nomes parece indicar a existência de versões alternativas num estádio posterior da transmissão textual. É evidente que a versão original da Primeira Crónica favorece a família da Maia ou a de Sousa (Soeiro Mendes) e não a de Riba Douro (Egas Moniz); mas ficamos sem saber se lhe atribuía ou não a função da criação)». In José Mattoso, A Primeira Crónica Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 5, Nº 6, Julho de 2009, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT