terça-feira, 21 de março de 2017

O Pintor Debaixo do Lava-Loiças. Afonso Cruz. «Quem lhe disse isso?, perguntou a parteira. Foi um amigo do coronel. Um escultor que veio um dia cá a casa»

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«Enquanto a água se pode guardar em garrafas, as histórias não podem ser engarrafadas sem que se estraguem rapidamente. Têm de andar ao ar livre como os animais selvagens. Temos de as soltar para que possam correr todas nuas. Sors nasceu em 23 de Novembro de 1895. Foi ele quem, em 1940, pintou o quadro que está pendurado na entrada de uma casa da Rua do Alto da Fonte, na Figueira da Foz. Essa entrada é um espaço relativamente pequeno, com uma arca de madeira do lado direito, mesmo por baixo do quadro pintado por Sors. Em frente há um relógio de pé, um móvel de canto e o bengaleiro feito de metade de uma hélice. Há uma serra de peixe-serra na parede do lado esquerdo, estatuetas africanas, quadros, bengalas, lanças indígenas, máscaras, objectos indecifráveis, pratos pintados. Em cima da arca há algumas presas de elefante e um dente de hipopótamo. O dente, propriamente dito, é grande, mas a raiz é muito maior. Muito da eficiência daquilo que fazemos, daquilo que mastigamos, depende sobretudo do que não se vê. Das raízes. É por isso que estou a contar esta história. Porque são as coisas que estão dentro de nós e em que ninguém repara quando nos olha. Temos uma paisagem muito grande que não se vê, a menos que nos debrucemos para dentro e mostremos aquilo de que nos lembramos. Nada é tão forte como as coisas que não se veem, como as raízes do dente do Behemot. Como um pintor debaixo de um lava-loiças.
Todos os jardins da nossa infância são o jardim do paraíso. A pele suave desses tempos em que se corria com as pernas arqueadas soltando uma espécie de luz pela respiração. Ríamos a correr para os braços dos adultos numa entrega absoluta. Eles, os adultos, atiravam-nos ao ar e apanhavam-nos com mãos ásperas, e, talvez por isso, quando crescemos nunca mais deixamos de, esporadicamente, sonhar que voamos. E de sonhar com gigantes e anões, pois eram essas as nossas proporções. Jozef Sors nasceu numa grande casa onde os seus pais trabalhavam. A propriedade pertencia a um coronel do exército chamado Möller. Nas traseiras havia um grande jardim cheio de flores, cercado por um muro alto, todo em pedra. A mãe de Jozef Sors era engomadeira e o pai era mordomo. Enquanto a mãe era uma figura sem protagonismo, baixa e simpática, com maçãs do rosto salientes, o pai era um homem muito especial. Não havia ninguém tão sincero quanto ele. Ignorava por completo qualquer civilidade e dizia exactamente o que sentia e via. Quando o filho nasceu, mal a parteira lhe havia cortado o cordão umbilical, exclamou: parece um rato. A parteira, que se chamava Marija, olhou-o de lado e mandou-o sair, mas o mordomo quis pegar-lhe ao colo. Estava enternecido e chegou mesmo a passar a mão pelos olhos para os limpar. Os seus braços enormes faziam com que o recém-nascido parecesse ainda mais pequeno. Parece mesmo um rato, dizia ele enquanto lhe acariciava a bochecha com o indicador da mão direita. A senhora Sors sorria de cansaço, com as maçãs do rosto maiores do que era habitual. Marija tirou o bebé das mãos do mordomo e pô-lo nos braços da mãe para que ele mamasse. Quando o bebé adormeceu, Marija comentou que era um belo rapaz, forte como a água do mar e saudável como a água da chuva. O olho esquerdo, que parecia uma lua minguante, revelava que iria ser um artista. Como os do circo?, perguntou o mordomo.
Não, como os outros. A senhora Sors começou a soluçar quando ouviu isto, pois não há nada mais triste do que ser um artista e olhar para o mundo como se o visse pela primeira vez. Quem lhe disse isso?, perguntou a parteira. Foi um amigo do coronel. Um escultor que veio um dia cá a casa. Parece-me uma grande felicidade que, quando se olhe para o mundo, pareça sempre que é a primeira vez que o fazemos. É uma grande tristeza, disse ela a soluçar. É a maior infelicidade. Eu, quando olho para as coisas quero que elas me sejam familiares, como o meu tio e o meu marido, como o pão que se come às refeições. Quero deitar-me sempre com o mesmo homem, com os mesmos lábios. Quero que os lençóis de hoje me pareçam os lençóis de ontem, mesmo que os bordados sejam completamente diferentes. Não quero que os beijos que recebo sejam novos, quero que sejam velhos, quero que sejam os de sempre. Não me quero sobressaltar como quando era jovem. Uma pessoa só pode ter paz quando está ao pé das mesmas coisas, quando nem repara nelas, porque elas já fazem parte de si, como se as tivesse comido e mastigado e engolido e agora fossem carne da sua carne e sangue do seu sangue. Só somos felizes quando já não sentimos os sapatos nos pés. E ao dizer isto adormeceu». In Afonso Cruz, O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, Editorial Caminho, colecção Romance Adulto, 2011, ISBN 978-972-212-615-1.

Cortesia de ECaminho/JDACT