domingo, 19 de março de 2017

Neve. Nobel da Literatura. Orhan Pamuk. «Uns poucos mostraram-se muito amistosos, talvez porque pensassem que Ka e Serdar bei eram candidatos e estavam trazendo-lhes latas de óleo de girassol…»

jdact e wikipedia

A nossa cidade é um lugar tranquilo
«(…) Que todos os recém-chegados, mesmo os jornalistas, devessem visitar a polícia, era um costume provinciano que remontava à década de 40. Como era um exilado político recém-chegado ao país depois de muitos anos de ausência e porque, embora ninguém tivesse tocado no assunto, sentira a presença dos guerrilheiros separatistas curdos (PKK) na cidade, Ka não fez objecção. Eles saíram para a neve, atravessando um mercado de frutas e passando pelas lojas de autopeças e ferragens da avenida Kâzim Karabekir, pelas casas de chá onde homens desempregados, deprimidos, olhavam a televisão e a neve caindo, e por lojas de laticínios que exibiam grandes queijos amarelos redondos; levaram quinze minutos para cruzar a cidade em diagonal. No caminho, Serdar bei parou para mostrar a Ka o lugar onde o ex-presidente fora assassinado. Conforme um boato, ele fora morto por causa de uma simples disputa municipal: a demolição de uma sacada ilegal. Capturaram o agressor três dias depois, na aldeia para onde tinha fugido; quando o encontraram escondido num celeiro, ele ainda estava com a arma. Mas houvera tanta bisbilhotice durante os três dias da sua captura que ninguém queria acreditar que ele era o verdadeiro culpado: a simplicidade da sua motivação desapontava. O quartel da polícia de Kars ocupava um comprido edifício de três andares na avenida Faikbey, onde as velhas construções de pedra, outrora pertencentes a russos e arménios abastados, agora, na sua maioria, sediavam órgãos do governo. Enquanto esperavam pelo subchefe de polícia, Serdar bei chamou a atenção para os altos tectos ornamentados e explicou que entre 1877 e 1918, durante a ocupação russa da cidade, aquela mansão com quarenta quartos fora, a princípio, a residência de um rico arménio, e depois, um hospital russo.
Kasim bei, o subchefe de polícia, veio com a sua barriga de cerveja recebê-los no corredor e os conduziu à sua sala. Ka logo percebeu que estavam diante de um homem que não lia jornais nacionais como o Republicano, pois os considerava de esquerda. Notou também que ele não ficou especialmente impressionado ao ver Serdar bei elogiar alguém simplesmente por ser poeta, mas que o temia e respeitava pelo facto de ser proprietário do principal jornal local. Depois que Serdar bei terminou de falar, o subchefe de polícia voltou-se para Ka. O senhor quer protecção? Como? Estou sugerindo apenas um policial à paisana. Para que fique tranquilo. Será que preciso mesmo disso?, perguntou Ka no tom inquieto de um homem cujo médico tivesse acabado de recomendar que passasse a usar uma bengala. Nossa cidade é um lugar tranquilo. Apanhamos todos os terroristas que estavam semeando a discórdia entre nós. Mas ainda assim eu recomendo que se faça isso, por via das dúvidas. Se Kars é um lugar tranquilo, eu não preciso de protecção, disse Ka. No íntimo ele esperava que o subchefe de polícia lhe garantisse novamente que Kars era um lugar tranquilo, mas Kasim bei não repetiu a afirmação.
Eles rumaram em direcção a norte, para Kalealti e Bayrampaşa, os bairros mais pobres. Ali os barracos eram feitos de pedra, tijolos e alumínio corrugado dos lados. Sob a neve que continuava a cair, foram andando de casa em casa: Serdar bei batia numa porta e, se uma mulher atendia, ele perguntava se podia falar com o homem da casa; quando Serdar bei o reconhecia, falava-lhe, num tom que inspirava confiança, que seu amigo, jornalista famoso, viajara de Istambul a Kars para escrever sobre as eleições e também para descobrir algo mais sobre a cidade, para escrever, por exemplo, sobre o porquê de tantas mulheres estarem suicidando-se, e se aqueles cidadãos pudessem dividir com ele suas preocupações, estariam fazendo uma boa coisa para Kars. Uns poucos mostraram-se muito amistosos, talvez porque pensassem que Ka e Serdar bei eram candidatos e estavam trazendo-lhes latas de óleo de girassol, caixas de sabão ou pacotes de biscoitos e de macarrão. Se eles resolviam convidar os dois homens para entrar por curiosidade ou simples hospitalidade, a primeira coisa que diziam a Ka era que não tivesse medo dos cães. Alguns abriam as suas portas, temerosos, imaginando, depois de tantos anos de intimidação por parte da polícia, que se tratava de mais uma batida, e mesmo depois de perceberem que aqueles homens não eram do governo, mantinham-se em silêncio. Quanto às famílias das jovens que se tinham suicidado (em pouco tempo, Ka ouvira falar de seis casos), todas insistiam que as suas filhas não tinham dado previamente nenhum motivo para preocupação, deixando-os a todos horrorizados e consternados com o acontecido». In Orhan Pamuk, Neve, 2002, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 2008, ISBN 978-972-233- 910-0.

Cortesia de EPresença/JDACT