sexta-feira, 10 de março de 2017

Erec e Enide. Manuel V. Montalbán. «Desta fonte não te aproximes nem sequer um pouco encontrarás outra que da Lagoa da Memória faz brotar a sua fresca água»

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«(…) Erec e Enide são dois pedaços de carne baptizados, sentenciou Estremoz: tem um grande mérito que te atrevas com esses dois adolescentes, dois marmelos que Chrétien Troyes inventou para expor uma fábula sobre o amor segundo as chaves do século XII. Ou a senhora ia para a cama com o seu guarda-costas, caso de Guinevere e Lancelote, ou iam os amantes jovens fazer garganteios para as florestas desfolhadas. Atrevo-me a lembrar-te que nem Erec nem Enide foram duas invenções de Chrétien Troyes e que toda a mitologia arturiana parece nascer de si própria. embora se sustente a historicidade da maioria das personagens, de Artur por exemplo, em relatos como Sueño de Rhonabwy, onde aparece metade deus metade guerreiro. Já Rhys, demonstrou que Artur é a resultante lendária de diferentes chefes militares por vezes medievais e pode-se mais ou menos rastrear essa historicidade nos outros cavaleiros da Távola Redonda. Erec está inserido na tradição celta e assim se configurou o Gereint Mabinogiou. Geoffrey Mobinogiou descreve Artur como um guerreiro contra Hades, não contra Roma. Figueiro converte-se num director de orquestra sorridente e dá a entrada a Myrna, mas nem ela sabe a quê.
Hades, Hades..., recorda, Myrna. Encontrei nas moradas de Hades, à direita, uma fonte... Myrna descobre o que lhe pede Figueiro e a duas vozes recitam a tabuinha órfica de Petélia que está no British Museum.

Encontrei nas moradas de Hades, à direita, uma fonte,
e junto dela erguido um branco cipreste.
Desta fonte não te aproximes nem sequer um pouco
encontrarás outra que da Lagoa da Memória
faz brotar a sua fresca água. Diante estão os guardiães
diz-lhes: sou filha da Terra e do Céu estrelado,
a minha linhagem também é celeste. Vós já o sabeis
estou seca de sede e morro. Pelo que dai-me já
a água fresca que flui da fonte da Memória...

Figueiro e Myrna estão emocionados como só o estariam um tenor e uma soprano no final de um dueto e comentam que era a reivindicação mais melancólica da Memoria que nos tinha legado a literatura antiga, e apoiado por este triunfo emocional, Figueiro crê chegado o momento oportuno de voltar ao rei Artur para reforçar: que Artur fosse, já, uma personagem sem dúvida histórica, não retira a aura lendária que envolve tudo o que diz respeito ao arturiano. De tudo isso emana um encantamento simbólico e ritual situável num território igualmente imaginário.
Não discordo desta afirmação do português, mas parece-me absurdo nesta altura da minha vida e das indagações sobre a chamada matéria da Bretanha, que ainda insistamos na historicidade de Artur e dos seus cavaleiros. A matéria da Bretanha tem valor por si mesma e em si mesma, como uma religião ou uma cultura, e insistir nas suas historicidades faria parte de um dos cinco milhões de inutilidades em que se poderia empenhar qualquer inteligência com vontade de perder tempo. Era já um passo em frente que um marxista como Figueiro d’Amaral assumisse o simbólico como um valor per se e abandonasse o neopositivismo ao Círculo de Viena, um empirismo logicista ou materialismo dialéctico para tirar a magia à demanda do Santo Graal ou aos jogos de recuperação amorosa de Erec. Pois bem, Myrna põe-se neopositivista e arremete contra o idealismo que sobrevive como prova convincente para aceitar como se fosse certa a lenda arturiana». In Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide, 2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.

Cortesia de Difel/JDACT