sábado, 4 de março de 2017

Contos de Eva Luna. Isabel Allende. «Então rompe-se a quietude simétrica de pintura e escuto as nossas vozes muito perto. Conta-me um conto, digo-te»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O rei ordenou ao vizir que lhe levasse, todas as noites, uma virgem; passada a noite mandava matá-la. Assim aconteceu durante três anos e na cidade já não havia donzela que pudesse servir para os assaltos daquele cavalgador. Mas o vizir tinha uma filha de grande formosura chamada Xehrazade..., tão eloquente que dava gosto ouvi-la. Tiravas a fita da cintura, largavas as sandálias, deitavas para o canto a tua grande saia, de algodão, parece-me, e soltavas o nó que te apanhava o cabelo num rabo de cavalo. Tinhas a pele arrepiada e rias. Estávamos tão próximos que nos podíamos ver, ambos absortos nesse ritual urgente, envoltos no calor e no cheiro que, de nós, se desprendia. Eu abria passagem pelos teus caminhos, as minhas mãos na tua cintura levantada e as tuas impacientes. Deslizavas, percorrias-me, trepavas por mim, envolvias-me com as tuas pernas invencíveis, dizias-me mil vezes vem com os lábios nos meus. No momento final tínhamos um vislumbre de completa solidão, cada um perdido no seu abismo ardente, mas logo ressuscitávamos do outro lado do fogo para nos descobrirmos abraçados na desordem das almofadas, debaixo do mosquiteiro branco. Afastava-te o cabelo para te olhar nos olhos. às vezes sentavas-te a meu lado, de pernas encolhidas e o teu xaile de seda sobre um ombro, no silêncio da noite que mal começava. Assim te recordo, calmamente. Pensas em palavras, para ti a linguagem é um fio inesgotável que teces como se a vida se fizesse ao contá-la. Eu penso em imagens congeladas numa fotografia, no entanto, esta não está impressa numa placa, parece desenhada à pena, é uma recordação minuciosa e perfeita, de volumes suaves e cores quentes, renascentista, como uma intenção captada sobre um papel granulado ou uma tela. É um momento profético, é toda a nossa existência, tudo o que foi vivido e está por viver, todas as épocas simultâneas, sem princípio nem fim. A certa distância olho esse desenho, onde também estou. Sou espectador e protagonista. Estou na penumbra, velado pela bruma de um cortinado translúcido. Sei que sou eu, mas sou também o que observa de fora. Conheço o que sente o homem pintado sobre a cama revolta, num quarto de vigas escuras e tectos de catedral, onde a cena aparece como um fragmento de uma cerimónia antiga. Estou ali contigo e também aqui, sozinho, noutro tempo da consciência. No quadro o casal descansa depois de fazer amor, a pele de ambos brilha húmida, o homem tem os olhos fechados, uma mão no peito e outra na coxa dela, em íntima cumplicidade. Para mim esta visão é recorrente e imutável, nada se altera, sempre o mesmo sorriso plácido do homem, a mesma languidez da mulher, as mesmas pregas dos lençóis e cantos sombrios do quarto, sempre a luz da lâmpada a iluminar os seios e as faces dela do mesmo ângulo, e o xaile de seda e os cabelos escuros a cair com igual delicadeza. Cada vez que penso em ti, vejo-te assim, assim nos vejo, detidos para sempre nessa tela, invulneráveis ao estrago da má memória. Posso recriar longamente essa cena, até sentir que entro no espaço do quadro e já não sou o que observa, mas o homem que jaz junto a essa mulher. Então rompe-se a quietude simétrica de pintura e escuto as nossas vozes muito perto. Conta-me um conto, digo-te. Como queres que ele seja? Conta-me um conto que nunca contasses a ninguém.

Tinha o nome de Belisa Crepusculario, não por fé de baptismo ou escolha de sua mãe, mas porque ela própria o procurou até o encontrar e com ele se ataviou. Percorria o país, desde as regiões mais altas e frias até às costas quentes, instalando-se nas feiras e nos mercados, onde montava quatro paus com um toldo de linho, debaixo do qual se protegia do sol e da chuva para atender a clientela. Não precisava de apregoar a mercadoria, porque de tanto caminhar por aqui e por ali todos a conheciam. Havia os que a aguardavam de um ano para o outro e quando aparecia na aldeia com a trouxa debaixo do braço faziam bicha em frente da sua barraca. Vendia a preços justos. Por cinco centavos entregava versos de memória, por sete melhorava a qualidade dos sonhos, por nove escrevia cartas de namorados, por doze inventava insultos para inimigos irreconciliáveis. Também vendia contos, mas não eram contos de fantasia, mas longas histórias verdadeiras que recitava de enfiada sem saltar nada. Assim levava as notícias de uma aldeia para outra. As pessoas pagavam-lhe por juntar uma ou duas linhas: nasceu um menino, morreu Fulano, casaram-se os nossos filhos, queimaram-se as colheitas. Em cada lugar juntava-se uma pequena multidão à sua volta para a ouvir quando começava a falar e assim se inteiravam das vidas dos outros, dos parentes que viviam longe, dos pormenores da guerra civil. A quem lhe comprasse cinquenta centavos, dava de presente uma palavra secreta para afugentar a melancolia». In Isabel Allende, Contos de Eva Luna, 1987, Porto Editora, 2016, ISBN 978-972-004-095-4.

Cortesia de PEditora/JDACT