quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

O Fundador. Aydano Roriz. «Com gestos de cabeça, o Piedoso aprovava a intervenção do conselheiro. E com a fuga de alguns dos melhores dos nossos judeus»

Cortesia de wikipedia e jdact

Para entender a História
«Não estava a ser fácil, para os reis de Portugal, fazer valer a posse das terras que haviam encontrado do outro lado do Atlântico em 1500. Com a abertura do caminho marítimo para as Índias eram poucos os súbditos da Casa de Avis que se dispunham a trocar o fascínio da riqueza fácil no Oriente, pelo desbravamento dos trópicos selvagens. Mas, nem por isso, a Coroa deixou de mandar para a nova província expedições regulares, que faziam cartas de navegação e portulanos, onde iam desenhando o contorno da costa e baptizando os rios, baías e outros acidentes geográficos. Mesmo assim, por quase meio século, o Brasil era tido apenas como mais uma posse. Uma, no vasto colar de terras que a Coroa portuguesa conquistara pelo mundo, em mais de setenta anos de insistentes tentativas de descobrir um caminho marítimo para as especiarias das Índias. Em todo o caso, não queriam perder a Terra de Santa Cruz. Até porque, embora ouro e prata não tivessem sido encontrados, concluíram que podiam levar daquela província valiosas peles de onça, aves palradoras de plumagem colorida e muita madeira nobre. Sobretudo uma que, depois de triturada, misturada com água e fermentada, resultava num corante avermelhado muito bem aceite nas tecelagens da Europa. Difícil era manter em segredo a origem daqueles artigos exóticos. E da boca de um marinheiro para outro, de um porto para outro, a notícia foi-se espalhando. Espalhando, e atraindo para o Brasil navios corsários e os chamados entrelopos, mercadores aventureiros, principalmente franceses, que não tinham escrúpulos em fazer frente ao monopólio português assegurado pelo papa.
O mês era o de Maio. O ano, o de 1548. Sentado à cabeceira da comprida mesa de carvalho, com a sua cara de monge e a expressão beata que lhe valera a alcunha de o Piedoso, o rei de Portugal afagou a volumosa barba negra e perguntou com voz de confessionário: e quanto a ti, Castanheira? António Ataíde, o conde de Castanheira, despertou do torpor e empertigou-se na poltrona. A longa explanação do marquês de Cadaval, contando das festividades que estava a programar para a próxima temporada de Verão, quando a corte mudasse para Sintra, haviam-no entediado. Por mais que, nos últimos vinte anos, volta e meia se visse obrigado a ouvir tolices de toda a monta, ainda não se habituara. Continuava a considerar um despropósito discutirem-se futilidades como aquela num Conselho Real. Receio que as novidades não sejam boas, Sereníssimo, falou em tom protocolar, atraindo as atenções para si. Recebi mensagem daquele nosso jogral, infiltrado nos palácios da Citu de Paris. Segundo ele, os franceses estariam a preparar uma nova investida contra o Brasil. Pelo sangue de Cristo! Vão começar com isso outra vez?! Receio que sim, Sereníssimo. E desta feita em larga escala, e apoiando com elegância as mãos entrelaçadas sobre a mesa: ao que consta, tão logo consigam sufocar a rebelião na Aquitânia, aquela por causa do imposto do sal, devem voltar as atenções para a vossa província de Santa Cruz. João III, o terceiro João a sentar-se no trono português, girou no dedo o anel de diamantes que lhe mandara de presente o rajá de Narsinga, nas Índias.
Castanheira parecia mesmo o arauto das más notícias, pensou. As más notícias era sempre ele quem as trazia primeiro. E aquela falta de tacto, aquela inapetência para fazer rodeios, aquele estilo directo do conselheiro às vezes aborreciam um pouco. De todo o modo, tinha de reconhecer: António Ataíde era dos poucos que nunca lhe escondiam nada. Por isso confiava nele. E tu acreditas nisso, Castanheira? Acredito, Sereníssimo. Na verdade, penso que se Vossa Alteza não tomar uma atitude decisiva, vamos acabar por perder aquelas terras para Henrique de França. Que se perca!, retrucou o príncipe João Manuel, filho do rei, obrigado pelo pai a participar em algumas reuniões do Conselho, ainda que não tivesse completado onze anos. Aquilo nunca nos rendeu coisa alguma. Não é bem assim, Alteza, argumentou Castanheira em tom professoral, procurando mostrar-se tolerante com o jovem candidato a rei. Com o pau-de-tinta tem-se ganho uns cem mil cruzados por ano. Da Nova Lusitânia tem vindo bastante açúcar. Um pouco de São Vicente também. E o dízimo de tudo é sempre recolhido à Real Fazenda. Muito pouco, se comparado com o que nos rendem as índias, contrapôs Francisco Portugal, camareiro-mor do pequeno príncipe, indo em socorro do seu pupilo, o herdeiro presumível do trono. Ataíde perscrutou o estado de espírito do rei e, como lhe parecesse que o monarca estivesse a apoiar os seus pontos de vista, continuou: o lucro com as índias não vai durar para sempre. Se Vossa Mercê se lembra, não é de hoje que falo nas reuniões do Conselho estarem os proveitos a diminuir, desde que os mercadores e financistas judeus começaram a fugir cá do Reino. Que o meu irmão Henrique não te ouça dizer isso, Castanheira, interpôs o monarca João, em tom de brincadeira. O principezinho emitiu um risinho tonto de menino fraquito, tão satirizado às escondidas na corte e por detrás dos reposteiros. É verdade, Sereníssimo, aquiesceu o conde de Castanheira, aderindo ao gracejo real. Um dia, quem sabe, Sua Eminência, o cardeal Henrique, mude de ideia. De todo o modo, até lá, Vossa Alteza sabe melhor do que ninguém: os judeus são tão necessários a um país quanto os padeiros. Com gestos de cabeça, o Piedoso aprovava a intervenção do conselheiro. E com a fuga de alguns dos melhores dos nossos judeus, por receio do Santo Ofício (maldito) continuou Castanheira, reduziu-se grandemente o comércio cá na Metrópole. Resultado: estamos a dever mais de dois milhões de cruzados. Oitocentos mil, só de juros atrasados. Ora, Castanheira... ,replicou um pouco irritadiço o monarca, fincando os cotovelos na mesa, para apoiar o queixo com os punhos. Não é preciso que me lembres isso a cada dia. Como vedor da Fazenda, sabes muito bem que herdei um tesouro arruinado. Sabes que tivemos secas tremendas. Que sofremos a pestilência e até um terramoto em Lisboa!» In Aydano Roriz, O Fundador, Saída de Emergência, colecção a História de Portugal em Romance, 2015, ISBN 978-989-637-740-3.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT