sábado, 11 de fevereiro de 2017

Joana. A Louca. Linda Carlino. «… os dois homens que mais amo a falarem sem parar, e nenhum percebeu que o outro não consegue compreender uma única palavra do que dizem!»

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«(…) E como se sente o meu doentinho depois do seu sono? Joana, ainda estais aqui?, procurou-lhe a mão, mas um ataque de tosse obrigou-o a pegar antes no lenço. Meu pobre querido. Tomai, tenho aqui o remédio, abri bem a boca. E despejou uma colherada de xarope de violetas de um frasco. É tão delicioso. Limpou a colher com a língua. Sois a minha enfermeira ou apenas uma criança gulosa? Ambas. E agora acho que são horas de uma tigela de caldo de galinha. Ele implorou-lhe: mais canja, não. Joana fez sinal ao camareiro que levasse a ordem à cozinha. Apaparicou o seu querido Filipe; primeiro banhou-lhe o rosto com água fresca, secando-o suavemente com uma toalha bordada; depois, penteou-lhe o cabelo e pôs-lhe um barrete de noite lavado. Afofou-lhe as almofadas e entalou as cobertas em seu redor. Hoje estou muito melhor. Joana. Em breve estarei suficientemente bem para mais um jogo de setas. Oh, detesto as doenças, apetece-me levantar-me. O jogo das setas ainda tem de esperar um bom pedaço; de qualquer forma, atirar paus um ao outro não me parece um passatempo muito sensato. Não percebeis nada de desporto. É bem verdade. Mas aqui está o vosso almoço. Vou deixar-vos por um bocadinho e apanhar ar na galeria. Fazei por comer tudo, os médicos recomendam-no seriamente. Sei isso muito bem, há dias que não como mais nada; não vos admireis se, quando voltardes, me encontrardes a cacarejar.
Joana riu-se. O vosso riso é o melhor remédio. Mas não tão bom como canja de galinha, retorquiu-lhe ela. Lá fora, inspirou o delicioso ar de Abril. Caminhou lentamente ao longo dos quatro lados da galeria, gozando profundamente a sua nova vida. Ouviu-se uma algazarra que subia de tom e vozes surpreendidas, e o pátio, lá em baixo, em breve se encheu de cavaleiros. Houve ordens gritadas e alguns dos cavaleiros saltaram imediatamente das selas, correndo para um cavalheiro que permanecia sentado na sua, à espera de assistência. Os guardas dos portões ergueram pendões com as armas de Castela e Aragão. Seis anos antes, Joana olhara e vira um jovem cavaleiro coberto de pó; naquele dia contemplava outro viajante mais velho, mas igualmente poeirento. Não, não podeis ser... Sois... Joana descalçou rapidamente as sobrechinelas para que os belos sapatos de pele a levassem rapidamente numa nuvem rodopiante e impetuosa de veludo vermelho ao longo da galeria, pelas escadas abaixo e através do pátio empedrado até um cavaleiro vestido inteiramente de negro.
Pai..., pai... Beijou-o, atirou os braços em seu redor e depois encostou o rosto ao peito dele. Fernando beijou-lhe a testa. Oh, querida Joana, voltastes finalmente para nós. Oh, pai, pai... Voltou a beijá-1o incessantemente, com as lágrimas a descerem-lhe pelo rosto. Joana, as princesas não se comportam assim. Esta sim! Deixai-me olhar a minha filha, uma mulher e mãe de três filhos saudáveis. A examinardes-me assim fazeis-me corar, riu-se ela. Agora é a minha vez. O pai estava muito mais gordo do que se recordava e Joana reparou que, ao remover o chapéu de viagem e o lenço, verificou cuidadosamente se a peruca estava direita. Usava peruca! E perdera um dos dentes da frente. Apesar de tudo isso, continuava a ser o seu pai forte e belo. Quanto à fria despedida do passado, descartou-a, pois não acabara ele de mostrar como estava impaciente por vê-la de novo? Não conseguira esperar até à sua chegada a Toledo. Fernando colocou, então, a importantíssima pergunta que o trouxera ali: Joana, tenho de saber a gravidade desta doença. Não há nada a temer, acreditai, o pior já passou e está a recuperar depressa. Filipe é forte e os médicos dizem que em breve estará bem e em forma. Mas tendes de o vir ver. E pegou-lhe na mão para o puxar em direcção às escadas. Minha querida, calma! É claro que o irei ver, embora o protocolo seja ignorado. Na verdade, devia esperar até chegardes a Toledo, mas eu e a vossa mãe tínhamos de saber se a doença era tão grave quanto temíamos. É essa a razão da minha presença aqui. A alegria de vos termos de novo em Espanha transformou-se rapidamente em ansiedade ao recebermos as notícias. Tendes de desculpar o nosso pessimismo. De braço dado, dirigiram-se aos aposentos de Filipe; Joana mal se detinha para respirar, desejando contar tudo de uma vez. Fernando atravessou o quarto para junto do genro e Filipe tentou remover o gorro em sinal de respeito. Não, não, meu amigo, deixá-lo estar. Precisais dele. Ofereceu a mão para que Filipe a beijasse, mas, ao recordar-se do sarampo, retirou-a rapidamente e afastou-se uns passos. Mandou colocar uma cadeira a uma distância que considerou segura. Entretiveram-se a trocar cumprimentos formais até serem interrompidos por uma gargalhada de Joana. Perdoai-me, pai, mas tenho perante mim os dois homens que mais amo a falarem sem parar, e nenhum percebeu que o outro não consegue compreender uma única palavra do que dizem! Se vos pudésseis ver! Tendes de ser a nossa intérprete, Joana. Podeis começar por dizer a Filipe como é um homem feliz por vos ter como esposa: bonita, encantadora e tão inteligente. O que poderia pedir mais?» In Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.

Cortesia de E. Presença/JDACT