sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Tempo de Lacraus. António Borges Coelho. «Ensaboou-se devagar. E deu consigo a explorar a parede. Lá estava o buraco tapado com miolo de pão por onde ele e o Alfredo espreitavam no banho a mulher do secretário»


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«(…) A mãe lançou-lhe o braço ao redor dos ombros. Subiram abraçados. Conversavam sobre pequenos nadas. Os olhos de André, aparentemente distantes, falavam com os objectos reencontrados, perguntavam pelos que faltavam ou saíram do lugar. Ficas no teu quarto. O quarto era dele e do Alfredo. Fora da bisavó.

Tenho um canário numa gaiola
canta tão bem que até consola...
Minha criada chamada Aurora
pôs-se a brincar
deitou-me o canário fora.

No meio da cantiga acabou-se-lhe o ar. Tinha noventa e sete anos. Quando se penteava, a cabeleira branca caía-lhe quase até à cintura. O anjo da guarda continuava parado à cabeceira da cama. Protegera-os com as suas asas na travessia da ponte da vida. Mas não impedira as zaragatas, as dentadas e os arranhões por tudo e por nada. O soalho rangeu sob o seu peso. Ouvia palavras antigas. Cada vez estás mais maluco! Palavras de outro tempo, de outro regresso. A mãe olhava-lhe os sapatos gastos, o fato grande de mais para o seu corpo, a mala de viagem aparentada com os sacos de linhagem dos que regressavam pela Brunheda. Assomou à varanda. A casa continuava plantada à beira da estrada olhando as oliveiras do vale e as montanhas verde-cinza, agora mergulhadas na penumbra. Ainda procurou no horizonte os castros antigos. Outrora comunicavam entre si por sinais de fogo. Agora só se os relâmpagos queimassem a noite e, nas tempestades de Verão, coroassem de fogo o alto da serra dos Vilares. Já no quarto, noite cerrada, reproduzia na memória a casa toda, os mais pequenos vãos. A sala e os quartos da frente abriam-se para a varanda. Debaixo do soalho, encontraram luíses de cobre, usados depois no jogo da malha. No canto da sala, onde velaram o corpo da bisavó, estava agora o televisor. Enterraram a bisavó numa manhã de chuva. Encaixilhado na vidraça da porta da varanda, André menino ficou a ver o caixão a descer a rua no ruído do arrastar dos socos sobre os paralelepípedos de granito.
Nos baixos da casa ficava a adega, atravancada pelo bojo do tonel e a massa de castanho da salgadeira. No cair do Inverno, ali penduravam o porco, de barriga aberta e vazia, antes de baixar, já desfeito, à guarda da salgadeira. Nos baixos e no sótão viviam os fantasmas. Murmuravam no uivar do vento e no tropear dos ratos. Certas noites ouviam-se nitidamente os pés de cabra do diabo pisando os degraus de madeira que subiam da adega. Mé! Mé! A mãe ouvira diferentes vezes o e as patas de bode do diabo. Não era possível nem prudente duvidar da sua palavra. Precisava de um banho quente. O esquentador substituíra a bacia de latão e os jarros de água quente que a mãe lhes lançava pela cabeça. Esfregava-lhes com força o surro que teimava em juntar-se nos joelhos e nas orelhas.
Ensaboou-se devagar. E deu consigo a explorar a parede. Lá estava o buraco tapado com miolo de pão por onde ele e o Alfredo espreitavam no banho a mulher do secretário. Quando o corpo grande, branco e nu, emergia das águas da bacia incendiava os olhos e os sentidos. Mas agora, em vez da mulher do secretário, era o corpo nu e imaginado de Joana que lhe acendia a fogueira do corpo.
Tem juízo. Quem te mandou a ti aceitar a boleia. Gozavas as férias noutra altura.
Deitou-se, já anoite ia alta. Apesar do cansaço, o sono não chegava. Nas trevas e no silêncio, os mortos caminhavam pela casa ao encontro dos vivos. Não te esqueças de ir à missa! Vai à senhora Marquinhas pagar a letra. Deixa lá que não perdes pela demora. Tenho de tirar a Joana da cabeça. Eram vozes e cheiros. O cheiro dos enchidos nos alguidares, o cheiro do doce de abóbora na caldeira de cobre com o batalhão das crianças à espera do sinal para rapar o fundo. André levantou-se, veio ao quintal. A noite estrelada permitia distinguir o contorno das coisas. Encostou-se ao bocal do poço, ladeado pelo patamar de cimento. Ali, numa tarde de calor africano, Basílio e Alfredo esperaram Maria, a criada, que saía da retrete. De sexo em riste, as mãos apertaram até que o esper… saltou enquanto a serviçal fugia com o rosto e o alto das pernas em fogo: Vou dizer à vossa mãe!» In António Borges Coelho, Tempo de Lacraus, Editorial Caminho, Lisboa, 1999, ISBN 972-211-271-6.

Cortesia de Caminho/JDACT