domingo, 22 de janeiro de 2017

O Círculo Virtuoso. Contos. Maria Isabel Barreno. «O cofre estava aberto, com a porta escancarada para trás. Nada mais desaparecera senão o anel. Caído no chão, junto à porta do aposento, estava o dono da casa, misteriosamente morto»

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O diamante roubado
A Estória
«Ansiosamente procurava o fim da estória. Escrevera-a quase de um só jacto, como se uma inspiração tivesse descido dos céus e lhe tivesse mostrado aquele desenrolar de enredos. Assim fora durante três dias: como de costume se levantara cedo, durante esses três dias, e aguardara a saída do marido e dos filhos com impaciência. Deixada só no silêncio da casa, sentara-se, rápida, na sua mesa de trabalho, não se arrastando pela casa, como frequentemente fazia, inventando pretextos para retardar o começo do trabalho. Isso acontecia quando ela não sabia o que escrever. Quando previa que, sentando-se, teria de prosseguir num esforço árduo, numa invenção laboriosa. Havia dias em que pensava que já não havia mais estórias para contar, que poucos contos diferentes existiam. Existiriam, quando muito, uns dez ou onze modelos, dizia dez porque era um número que toda a gente citava, a certa dezena; dizia onze porque era um número de que muito gostava. Haveria uns dez modelos de estórias, mais certamente onze, e depois todas as estórias eram versões desses modelos, no fundo com poucas variantes. E por isso havia dias em que a sua escrita lhe dava um enjoo quase insuperável, e ela inventava toda a espécie de tarefas urgentes antes de se sentar à mesa e começar o trabalho diário. Mas surgira-lhe então aquela estória radiante, descida do céu; prontinha, como se alguém lha sussurrasse ao ouvido. Afadigara-se três dias inteiros, tentando acompanhar o ritmo rápido com que a narração se lhe revelava. Helena escrevera e escrevera, antevendo o prazer dos seus eventuais leitores: uma estória onde instalara uma heroína bela e enigmática, com nome igual ao seu.

O Roubo da Jóia
O cofre estava aberto, com a porta escancarada para trás. Nada mais desaparecera senão o anel. Caído no chão, junto à porta do aposento, estava o dono da casa, misteriosamente morto. O médico legista observava-o.Veloso, o detective encarregue do caso, sentou-se numa poltrona, defronte da viúva. Esta tinha um olhar angustiado, mas em tudo o mais mantinha a calma: nos gestos, nas mãos suaves pousadas sobre o regaço. Talvez um pouco determinadas de mais, essas mãos, como se agarrassem os joelhos, para não tremer? Para ocultar receios, ou culpas? Recapitulemos, disse Veloso. O cofre contém vários outros valores: dinheiro, jóias, papéis. Sim, respondeu a dona da casa, em voz baixa. Só desapareceu o anel, com o diamante Nur, famoso em todo o mundo pela sua água puríssima e pelo seu valor? Sim, repetiu a bela Helena; hesitou, depois acrescentou, sempre em voz quase sussurrada. No mundo, ele é apreciado sobretudo pelo valor em dinheiro que lhe foi atribuído. Mas eu e o meu marido apreciávamo-lo sobretudo pela sua beleza. Pela sua transparência absoluta. Havia qualquer coisa de estranho naquela frase que Veloso não conseguiu identificar. Como sempre fazia em casos semelhantes, memorizou-a letra por letra, para depois a analisar mais tarde, também letra a letra, som a som, nas mais ínfimas inflexões de voz, deitado na cama, olhando o tecto. A posição horizontal inspirava-o particularmente, e o escuro, e o silêncio da noite. Tudo tem um significado, acreditava, tanto no comportamento das pessoas como nos factos que nos rodeiam, tudo se interliga e nada acontece por acaso. Firme nestas convicções continuou perscrutando solidamente o rosto da sua interlocutora». In Maria Isabel Barreno, O Círculo Virtuoso, Contos, Editorial Caminho, 1996, ISBN 978-972-211-063-1.

Cortesia deECaminho/JDACT