sábado, 14 de janeiro de 2017

Abadia de Northanger. Jane Austen. «Aos 15, as aparências se corrigiram. Começou a encaracolar os cabelos e a ansiar por bailes, encorpou e os seus traços suavizaram-se, com exuberância e colorido»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Ninguém que tenha visto Catherine Morland em sua infância poderia supor que ela tivesse nascido para ser uma heroína. Sua situação na vida, o carácter de seu pai e de sua mãe, a sua própria pessoa e seu ânimo, tudo se mostrava igualmente contra ela. Seu pai, um clérigo, não era desafortunado ou pobre, um homem muito respeitável, embora seu nome fosse Richard, e nunca fora bonito. Tinha uma considerável autonomia, além de dois salários; e nem de longe era dado a travar as suas filhas. Sua mãe, dona de um apropriado senso comum, tinha bom temperamento e, o que era mais notável, uma boa constituição. Teve três filhos antes de Catherine nascer. E, ao invés de morrer ao trazer esta última ao mundo, como seria de se esperar, ela ainda viveu, viveu para ter mais outros seis filhos e vê-los crescer ao seu redor, enquanto gozava de excelente saúde. Uma família de dez filhos sempre será chamada de uma família admirável; em que há cabeças, braços e pernas suficientes para o adjectivo. Mas os Morland tinham outro pequeno direito sobre a palavra, pois eram, em geral, muito correctos, sendo que Catherine, por muitos anos, foi tão correcta quanto os demais. Dona de compleição magra e estranha, pele pálida, sem cor, cabelos pretos escorridos, e traços fortes, excessivamente fortes para a sua pessoa. E não menos inapropriada para o heroísmo parecia a sua mente. Ela era apaixonada pelas brincadeiras dos garotos e preferia críquete não apenas em relação às bonecas, mas também às diversões mais heróicas da infância, como cuidar de um rato do campo, alimentar um canário ou regar uma roseira. Na verdade, ela não gostava do jardim. E se fazia ramalhetes de flores era principalmente pelo prazer de enganar, pelo menos era o que se supunha, pois ela sempre preferia aquelas proibidas de serem colhidas. Tais eram suas propensões. E suas habilidades eram bem peculiares. Ela nunca podia aprender ou compreender algo antes de ser ensinada. E, às vezes, nem mesmo assim, pois era muito desatenta e, ocasionalmente, estúpida. Sua mãe levou três meses para ensiná-la a repetir Beggar’s Petition (poema que encabeça o livro Poems on Several Occasions, do reverendo Thomas Moss, publicado em 17699), no entanto sua irmã mais nova, Sally, podia recitá-lo melhor do que ela. Não que Catherine fosse sempre estúpida, de jeito nenhum. Ela aprendeu a fábula The Hare and Many Friends (fábula de Esopo, transformada em poema por John Gay, em 1727) tão rápido quanto qualquer garota na Inglaterra. Sua mãe queria que ela aprendesse música, e Catherine estava certa de que gostaria disso, pois adorava pressionar as teclas da velha e abandonada espineta (instrumento similar a um piano ou um cravo, inventado por Giovanni Spinnetti, em 1503); assim, começou aos oito anos, estudando por um ano apenas, pois já não aguentava mais. A senhora Morland, que não insistia em tornar prendadas as suas filhas, a despeito da incapacidade ou do fastio, permitiu que ela abandonasse os estudos. O dia em que demitiu o professor de música foi um dos mais felizes da vida de Catherine. Seu apreço por desenho não era muito maior, se bem que, sempre que encontrava uma carta jogada fora por sua mãe ou qualquer pedaço de papel, ela fazia o que podia, desenhando casas e árvores, galinhas e galos; tudo parecendo a mesma coisa. Seu pai lhe ensinava a escrever e a fazer contas; sua mãe, francês. Sua competência em qualquer destas disciplinas não era notável e ela se esquivava das lições sempre que podia. Que carácter estranho e irresponsável! Com todos esses sintomas de má conduta, ela não tinha um mau coração ou um mau temperamento. Quase nunca era teimosa e muito menos emburrada. Pelo contrário, muito bondosa com os menores, e raramente autoritária. Ela era bem mais barulhenta e irrequieta; odiava o confinamento e a limpeza; e amava, mais do que tudo, rolar pela verde encosta abaixo, atrás de sua casa. Assim era Catherine Morland aos 10 anos.
Aos 15, as aparências se corrigiram. Começou a encaracolar os cabelos e a ansiar por bailes, encorpou e seus traços suavizaram-se, com exuberância e colorido. Seus olhos ganharam mais vivacidade e a sua figura, mais imponência. Seu amor pelo desaire deu lugar a uma inclinação pela sofisticação; à medida que crescia, tornava-se mais limpa e mais esperta. Agora tinha o prazer de ouvir, às vezes, seu pai e sua mãe comentarem sobre o seu aprimoramento pessoal. Catherine está se tornando uma garota muito bonita, ela está quase encantadora. Eram palavras que agarravam os seus ouvidos, de vez em quando. E como eram bem-vindos tais sons. Parecer-se quase encantadora é uma aquisição mais prazerosa para uma garota de aparência rude, pelos primeiros quinze anos de sua vida, do que para uma garota bonita desde o berço. A senhora Morland era uma mulher muito boa e desejava que seus filhos tivessem tudo o que almejassem. Mas estava sempre tão ocupada em cuidar e em ensinar os mais novos, que os mais velhos eram deixados a cuidar de si mesmos. Deste modo, não era muito intrigante que Catherine, que por natureza nada tinha de heróica em si, preferisse, na idade de 14 anos, críquete, beisebol, montar a cavalo e correr pelos campos, a livros, ou, pelo menos, livros educativos. No entanto, dado que nada como um conhecimento útil poderia ser obtido disso e que eram apenas histórias e não reflexões, ela nunca tinha qualquer objecção a livros. Mas, dos 15 aos 17 anos, ela estava planeando para se tornar uma heroína». In Jane Austen, Abadia de Northanger, 1803, 1818, Relógio D’Água, Clássicos para Leitores de Hoje, 2016, ISBN 978-989-641-596-9.

Cortesia de RD’Água/JDACT