sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Um estranho amor. Elena Ferrante. «Não se encontrou o saia-casaco azul. Não encontraram sequer as cuecas, as meias, os sapatos, a carteira com os documentos. Mas tinha no dedo o anel de noivado e a aliança»

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«(…) À noite recebi o primeiro telefonema. A minha mãe disse-me em voz tranquila que não podia contar-me nada: impedia-lho um homem que estava com ela. Depois começou a rir e desligou. A princípio prevaleceu o estupor. Pensei que quisesse brincar e resignei-me a esperar um segundo telefonema. De facto, deixei passar as horas em conjecturas, inutilmente sentada junto do telefone. Só depois da meia-noite me dirigi a um amigo polícia, que foi muito simpático: disse que não me preocupasse, ele tratava de tudo. Mas passou a noite sem que houvesse notícias da minha mãe. De certo havia apenas a sua partida: a viúva De Riso, uma senhora só, da mesma idade que ela, com quem há quinze anos alternava períodos de boa vizinhança com períodos de desavença, dissera-me ao telefone que a tinha acompanhado à estação. Enquanto estava na fila para adquirir o bilhete, a viúva comprara-lhe uma garrafa de água mineral e uma revista. O comboio estava cheio, mas a minha mãe mesmo assim tinha encontrado lugar perco da janela, num compartimento apinhado de militares de licença. Tinham-se despedido, recomendando-se mutuamente cuidado. Como estava vestida? Da forma habitual, com roupa que tinha há anos: saia-casaco azul, uma carteira de cabedal preto, sapatos velhos com meio salto, uma maleta coçada.
Às sete da manhã a minha mãe telefonou de novo. Apesar de eu a bombardear com perguntas (Onde estás? De onde estás a telefonar? Com quem estás?), limitou-se a desbobinar em voz muito alta, dizendo-as pausadamente com prazer, uma série de expressões obscenas em dialecto. Depois desligou. Aquelas obscenidades provocaram-me uma estranha regressão. Voltei a telefonar ao meu amigo, espantando-o com uma confusa mistura de italiano e de expressões em dialecto. Quis saber se a minha mãe estava particularmente deprimida nos últimos tempos. Ignorava. Admiti que já não era como dantes, tranquila, pacatamente divertida. Ria sem motivo, falava de mais; mas as pessoas de idade fazem muitas vezes isso. O meu amigo também concordou: acontecia muitas vezes os velhos, com os primeiros calores, fazerem coisas estranhas; não era motivo para preocupação. Eu, pelo contrário, continuei a preocupar-me e corri a cidade de cima a baixo, procurando sobretudo nos lugares onde sabia que gostava de passear.
O terceiro telefonema chegou às dez da noite. A minha mãe falou confusamente de um homem que a seguia para a levar embrulhada num tapete. Pediu-me que corresse a ajudá-la. Supliquei-lhe que me dissesse onde estava. Mudou de tom, respondeu que era melhor não. Fecha-te dentro de casa, não abras a porta a ninguém, recomendou. Aquele homem também me queria fazer mal a mim. Depois acrescentou: vai dormir. Agora vou tomar banho. Não se ouviu mais nada. No dia seguinte, duas raparigas viram o seu corpo a boiar a poucos metros da margem. Tinha vestido apenas o soutien. A mala não foi encontrada. Não se encontrou o saia-casaco azul. Não encontraram sequer as cuecas, as meias, os sapatos, a carteira com os documentos. Mas tinha no dedo o anel de noivado e a aliança. Usava nas orelhas os brincos que o meu pai lhe tinha oferecido meio século antes. Vi o corpo e perante aquele objecto lívido senti que tinha de me agarrar a ele para não ir parar sei lá onde. Não tinha sido violado. Apresentava apenas algumas equimoses provocadas pelas ondas, aliás leves, que o tinham atirado durante toda a noite de encontro a certos escolhos à beira de água. Pareceu-me que tinha em volta dos olhos restos de uma maquilhagem que devia ter sido muito carregada». In Elena Ferrante, Um Estranho Amor, 1995, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2005, ISBN 972-202-879-0.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT