quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O Meças. J. Rentes de Carvalho. «Serras. Despenhadeiros. Pedregulhos. Acolá um tufo de verde, além um riacho, caminhos onde há muito não passa alma, silvedos, vertentes, penedias que semelham muros de fortaleza»

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«(…) Lentas, como de enterro, um sino badala pancadas que não são de relógio a dar horas nem das Trindades, pois o sol vai alto. Não sabe onde está, quem é ou o que o trouxe, mas nada o surpreende ou transforma, sente sua a vestimenta grossa de feitura antiga, os tamancos, o gorro de lã, as mãos calejadas. Ignora o que o trouxe, donde vem ou porque pára defronte daquela casa de paredes toscas, janelas estreitas, um fumo de lareira a subir da telha-vã. Estaca e aguarda como se lho ordenassem, ouve o rangido, vê que uma das janelas se abre, puxada por mão invisível. Demora a que a mulher se mostre por inteiro, anciã de cabeio revolto, olhos desorbitados, o rosto uma estampa de desespero, os lábios torcidos num esgar. Coberta do que parece um sambenito de pano encardido, debruça-se, aponta com o braço descarnado, ruge um mandamento: diz à minha filha que vou morrer! E de súbito, como se tivesse caído num alçapão, some-se da janela. Queda-se petrificado. Nada reconhece do lugar nem do tempo, o tanger do sino vai esmorecendo, os vultos desapareceram. Que poder traduziu da língua desconhecida o recado para que ele entendesse? Para que foi chamado? Terá sido sonho em que se perdeu, laço que o prende à estranha e ao tão assombrado lugar? Quer esquecer e não pode. Seca os olhos na mão, tosse a desfazer a gosma que lhe corta o ar. Ali no alto, um escuro de breu, em momentos assim perde o entendimento e, feito outro, encarna neste, naquele, incapaz de distinguir se viu, se ouviu, sem força que o defenda, obrigado a assistir e a recordar.
Serras. Despenhadeiros. Pedregulhos. Acolá um tufo de verde, além um riacho, caminhos onde há muito não passa alma, silvedos, vertentes, penedias que semelham muros de fortaleza. Um longe de terras de escasso pão e de inocência medieva, gente sem nome nem conta, a viver no que alguns chamam o antigamente, o primitivo de tempos idos. Calam e escondem, olham de lado, vivem o medo, a pobreza, geram como animais, aceitam o destino. Será que um dia lho disseram? Ouviu contar em segredo? Estes dois, que em noite de grande calor e fraco luar se sentam num penhasco, mudos, costas voltadas e cabeça baixa, trazem horas de caminho, há muito estariam ali não fosse o terem vindo aos bordos, mais as vezes que se encostaram a golfar, ou arriando as calças por não segurarem a tripa. Têm pela frente meia légua plana de searas, uma descida de mau piso e muitas voltas, o riacho, a calçada que levará cada um a sua casa. Por enquanto arrotam, peidam, repetem o vómito. Um cai e fica de bruços, o outro escorrega do assento mas consegue firmar-se, desaperta a braguilha, tropeça, cambaleia, avança para o camarada e, vagaroso, mija-lhe por cima. Riem ambos, engalfinham-se aos murros de bebedeira, não sentem se os dão ou recebem, empurram-se e caem às arrecuas, adormece um contra o pedregulho, o outro na poça de mijo. Desde miúdos une-os estranha afeição, constantemente a procurar-se, sofrendo se se não vêem. Cresceram maldosos, bons na fisga e nas armadilhas, ágeis que nem macacos a roubar no cocuruto das cerejeiras os ninhos da passarada. Feitos homens, acasalaram, geraram, menos ligados à família que ao sentimento que constantemente os faz procurar-se no trabalho ou na folga. Assentaram praça juntos. Cumprido o tempo, festejaram com uma carraspana de três dias, vencendo a que usavam tomar na festa do padroeiro. Acordam e ainda é noite. Não se encaram nem falam, sofrem o ar morno, limpam o suor às costas da mão. Lado a lado, o passo mais seguro, viram da rodeira para o atalho. Na descida vão em fila, às vezes escorregam na caruma dos pinhos e embatem um no outro, empurram-se de marotice, o que primeiro a vê desata a correr e salta para a ribeira, que ali faz poço. Embora a água só dê pelo peito, braceja a fingir que nada, sem tempo para se desviar quando o companheiro lhe cai em cima de trambolhão, ambos a perder o pé, a afundarem-se com o peso da roupa encharcada». In J. Rentes de Carvalho, O Meças, Quetzal Editores, Língua Comum, Lisboa, 2016, ISBN 978-989-722-286-3.

Cortesia de QuetzalE/JDACT