segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Madame Bovary. Gustave Flaubert. «Logo que voltou para casa, o garoto foi amimado como um príncipe. A mãe alimentava-o com doces; o pai deixava-o correr descalço e, para se mostrar filósofo, dizia até que ele podia andar todo nu»

jdact

«(…) Tudo voltou a acalmar-se. As cabeças inclinaram-se sobre as pastas e o caloiro ficou duas horas numa atitude exemplar, embora tenha havido, uma vez ou outra, alguma bolinha de papel que, atirada com o bico de uma pena, lhe veio acertar na cara. Mas ele limpava-se com a mão e continuava imóvel, de olhos baixos. À noite, na sala de estudo, tirou da carteira as mangas de alpaca, arrumou as suas coisas e traçou cuidadosamente as linhas no papel. Vimo-lo trabalhar conscienciosamente, procurando todas as palavras no dicionário e esforçando-se bastante. Foi sem dúvida essa boa vontade de que deu provas que lhe valeu não ter passado para a classe inferior, porque, embora soubesse razoavelmente as regras, não tinha nenhuma elegância nos modos. Fora o cura da aldeia que o iniciara no latim, visto os seus pais, por economia, o terem enviado para o colégio o mais tarde possível. O pai, senhor Charles-Denis-Bartholomé Bovary, antigo ajudante do cirurgião-mor, comprometido, por volta de 1812, em assuntos de recrutamento e obrigado, por essa época, a abandonar o serviço, aproveitara-se então das vantagens pessoais para arrecadar um dote de seis mil francos, que se lhe oferecia na pessoa da filha de um negociante de chapéus, a qual se apaixonara pela sua elegância. Homem belo, fanfarrão, fazendo tilintar bem as esporas, usando suíças compridas a tocar nos bigodes, com os dedos sempre carregados de anéis e vestido de cores vistosas, tinha o aspecto de um valente, com a desenvoltura de um caixeiro-viajante. Depois de casado viveu dois ou três anos da fortuna da mulher, comendo bem, levantando-se tarde, fumando em grandes cachimbos de porcelana, só voltando para casa à noite, depois do espectáculo, e frequentando os cafés. O sogro morreu e deixou pouca coisa; ele indignou-se com isso, montou uma fábrica, perdeu nela algum dinheiro e retirou-se para o campo, onde pretendeu desforrar-se. Mas, como não entendia mais de agricultura do que de chitas, e porque montava os cavalos em vez de os pôr a trabalhar, bebia sidra às garrafas em vez de a vender em barris, comia as melhores aves da capoeira e engraxava as botas de caçar com o toucinho dos porcos, não tardou a aperceber-se de que mais valia abandonar toda a especulação.
Pela importância de duzentos francos anuais conseguiu então arrendar, numa aldeia dos confins das terras de Caux e da Picardia, uma espécie de quinta e, ao mesmo tempo, residência de proprietário. Desgostoso, cheio de remorsos, acusando o céu, sentindo inveja de toda a gente, encerrou-se ali a partir da idade de quarenta e cinco anos, enojado com os homens, dizia ele, e decidido a viver em paz. A mulher fora em tempos louca por ele; amara-o com mil e uma atitudes de servilismo, que ainda mais o afastaram dela. Outrora jovial, expansiva e apaixonada, tornara-se, ao envelhecer (como o vinho que, exposto ao ar, se transforma em vinagre), mal-humorada, lamurienta, nervosa. Sofrera tanto, sem se queixar, ao princípio, quando o via correr atrás de todas as marafonas da aldeia e quando, à noite, voltava dos piores lugares, embrutecido e a cheirar à bebedeira! Depois, o orgulho dela revoltara-se. Então tornara-se calada, engolindo a raiva num estoicismo mudo que conservou até à morte. Mantinha-se continuamente ocupada, tratando dos negócios da casa. Ia falar aos advogados, ao juiz, recordava-se do vencimento das letras, conseguia prorrogações; e, em casa, passava a ferro, cosia a roupa, lavava, vigiava os trabalhadores, liquidava as contas, enquanto, sem se preocupar com coisa nenhuma, o senhor, permanentemente entorpecido numa sonolência amuada de que só despertava para lhe dizer coisas desagradáveis, continuava a fumar ao canto da lareira e a cuspir nas cinzas. Quando ela teve um filho, foi preciso entregá-lo a uma ama. Logo que voltou para casa, o garoto foi amimado como um príncipe. A mãe alimentava-o com doces; o pai deixava-o correr descalço e, para se mostrar filósofo, dizia até que ele podia andar todo nu, como os filhotes dos animais. Ao contrário das tendências maternas, tinha ele um certo ideal viril da infância, segundo o qual procurava formar o filho, querendo que este fosse educado duramente, à maneira espartana, para adquirir uma boa constituição. Mandava-o ir deitar-se às escuras, ensinava-o a beber grandes doses de rum e a insultar as procissões. Mas, como era por natureza pacífico, o miúdo correspondia mal aos seus esforços. A mãe andava sempre com ele agarrado às saias; recortava-lhe cartões, contava-lhe histórias, entretinha-se com ele em monólogos sem fim, cheios de gracinhas melancólicas e de tagarelices mimalhas. No isolamento da sua vida, ela meteu naquela cabeça de criança todas as vaidades esparsas, desfeitas. Sonhava com altas posições, via-o já crescido, belo, espirituoso, bem estabelecido, como engenheiro ou magistrado. Ensinou-o a ler e, com a ajuda de um velho piano que tinha, até o ensinou a cantar duas ou três romanças. Mas, a tudo isso, o senhor Bovary, pouco preocupado com as letras, dizia que não valia a pena! Teriam eles alguma vez meios para o manter nas escolas do Governo, para lhe comprar um cargo ou montar-lhe um negócio? Além disso, um homem desembaraçado triunfa sempre na vida. A senhora Bovary mordia os lábios e o filho vagabundeava pela aldeia. Ele seguia os trabalhadores e fazia voar os corvos, atirando-lhes com torrões. Comia amoras pelos valados, guardava os perus com uma vara, espalhava o trigo para secar, corria pelo bosque, brincava ao jogo do avião debaixo do pórtico da igreja nos dias de chuva e, nos dias de festa, pedia ao sacristão que o deixasse tocar os sinos, para se pendurar com todo o peso na grande corda e sentir-se levado por ela no seu vaivém.
Por isso foi crescendo como um carvalho. Adquiriu mãos robustas e cores saudáveis». In Gustave Flaubert, Madame Bovary, 1857, Relógio d’Água, 2011, ISBN 978-989-641-177-0.

Cortesia de Relógio d’Água/JDACT