quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Azul-Corvo. Adriana Lisboa. «Mais de uma vez pensei, durante os primeiros meses, que aquele não era um lugar feito para os seres humanos, não mais do que para as baratas»

jdact e wikipedia 
«O ano começou em Julho. O lugar era estranho. O suor corria por dentro, por trás da pele, eu suava e meu corpo continuava seco. Era como se o ar fosse duro, sólido, um ar de pedra. Eu bebia um copo d’água depois do outro até sentir a barriga estufada e pesada mas era sempre isso, o suor seco e o ar duro e o sol com um ferrão em cada raio. Não havia nenhuma brisa, nenhum hálito que viesse me aliviar um pouco entrando pelas frestas da blusa, levantando a barra da saia ou sacudindo meu cabelo com promessas de salvação. Em compensação, eu nunca via baratas. Barata americana: Periplaneta americana. Li certa vez que elas têm a capacidade de se autorregenerar, dependendo da gravidade da injúria. Eu as conhecia intimamente, de convívio e de fama (as únicas capazes de sobreviver a uma hecatombe nuclear etc.), de encontros-surpresa na cozinha e no hall do elevador de serviço. Em Copacabana, elas estavam em toda parte. Mas ali eu não via baratas. Era até possível que elas existissem, e conseguissem tolerar a constante falta de humidade e a seriedade do Inverno, quando fosse Inverno. Mas eram bem mais discretas. Eu tinha treze anos. Ter treze anos é como estar no meio de lugar nenhum. O que se acentuava devido ao facto de eu estar no meio de lugar nenhum. Numa casa que não era minha, numa cidade que não era minha, num país que não era meu, com uma família de um homem só que não era, apesar das intersepções e das intenções (todas elas muito boas), minha. Os nós dos dedos ficavam esbranquiçados, querendo rachar. Era estranho. Eu parecia me transformar progressivamente em outra coisa, como se estivesse passando por uma lenta mutação. Talvez eu virasse um lagarto ou uma daquelas plantas capazes de vicejar no deserto. Talvez eu me mineralizasse e virasse um rio temporário, daqueles que somem no leito crestado, na seca, e depois incham e escorrem felizes como se tudo não passasse disso, escorrer felizes, sem qualquer ameaça. Como se a sua própria vida de rio não fosse sazonal e quebradiça. Mais de uma vez pensei, durante os primeiros meses, que aquele não era um lugar feito para os seres humanos, não mais do que para as baratas. E, no entanto, havia treze milénios que os seres humanos viviam ali, numa queda de braço com o lugar, muito antes das minas de ouro e prata do século dezanove. Muito antes de Buffalo Bill. Naquele mês de Julho, o primeiro mês do meu ano-novo, Fernando me levou a uma piscina pública. As pessoas de pele clara se estatelavam nas espreguiçadeiras em busca de um bronzeado que custava a chegar, e que quando chegava tinha um certo avermelhado óbvio demais, avermelhado demais. Assim como os outros latinos, e como os indianos, minha pele já bem marrom na origem ficava ainda mais marrom com uma hora de sol. Eu não sabia muito bem o que fazer com toda aquela melanina fácil, leviana, que se entregava de coração ao sol como se fosse voluntária de algum rito sacrificial. Uma mulher falou comigo quando passou pela minha cadeira voltando da piscina, disse que eu tinha um belo bronzeado. Quando ela sorriu, seus olhos se afundaram nas dobras de gordura que cobriam o seu rosto. Pensei: ela parece um travesseirinho de plumas. Ela usava um fato de banho com saiote e tinha mãos muito pequenas na ponta dos braços obesos, mas caminhava com seus pés atarracados como se tivesse medo de tocar o chão. Caminhava como se o chão estivesse cheio de pedras. Cogitei elegância. Não era elegância. Talvez uma certa desconfiança no acto de caminhar. Talvez aquela mulher nos lembrasse que é preciso fazer cerimónia com o mundo, que isto aqui não é de brincadeira, que isto é coisa séria e perigosa, e que o simples gesto de pisar no chão já te confere uma responsabilidade inimaginável. Ou talvez fosse apenas seu jeito de caminhar e não tivesse nada a ver com responsabilidade e ninguém tivesse, aliás, nada a ver com isso. Na piscina, emergi ao lado de um homem bonito, com cordas grossas de músculos enrolados nos braços duros, e olhei de perto e percebi que ele tinha cílios louros. Eu não sabia que existiam pessoas de cílios louros. O homem bonito trocava sorrisos e palavras (mais sorrisos do que palavras) com uma jovem elástica de sobrancelhas cinzeladas.
Afundei de novo e abri os olhos lá em baixo e vi uma multidão de pernas de vários formatos, tamanhos, tonalidades e espessuras. Tentáculos de um leviatã de águas cloradas, oscilando para cá, para lá, sem critérios nem sincronia. Antes, em Copacabana, havia: biquinis minúsculos. Uma ou outra mulher passando água oxigenada nas pernas para alourar os pelos. Dependendo do ponto, muitas crianças. Dependendo do ponto, algumas prostitutas. Corpos musculosos correndo sob o sol. Corpos flácidos correndo sob o sol. Tangas apertadas delineando o saco dos homens e revelando para que lado ficava o pénis. Quando eu não tinha mais nada para fazer, na praia, brincava de elaborar estatísticas, se havia mais homens com o pénis para o lado esquerdo ou para o lado direito. Agora, em Lakewood, havia: biquinis e fatos de banho grandes em tecidos que às vezes formavam papadas nas ancas. Homens de bermuda. Na beira da piscina, pessoas comendo hambúrguer e batata frita e bebendo cerveja e refrigerante em copos king-size de papel. O tamanho das coisas me surpreendia. São muito caras?, perguntei ao Fernando. Não, ele me disse. Você quer? Eu disse que não. E agradeci, conforme a minha mãe me ensinou a fazer». In Adriana Lisboa, Azul-Corvo, 2010, Quetzal Editores, 2012, ISBN 978-989-722-013-5.

Cortesia de QuetzalE/JDACT