sábado, 15 de outubro de 2016

A Força da Idade. Simone Beauvoir. «O que me inebriou quando voltei a Paris, em Setembro de 1929, foi primeiramente minha liberdade. Com ela sonhara desde a infância, quando brincava de gente grande com minha irmã»

jdact e wikipedia

«Lancei-me numa aventura imprudente quando comecei a falar de mim: começa-se e não se acaba mais. Meus vinte primeiros anos, há muito que os desejava contar; nunca esqueci os apelos que dirigia, na adolescência, à mulher em que iria me tornar, corpo e alma. Nada ficaria de mim, nem mesmo uma pitada de cinzas; rogava-lhe que me arrancasse um dia desse vazio em que ela teria me feito mergulhar. Talvez meus livros não tenham sido escritos senão para atender a essa antiga prece. Aos cinquenta anos julguei que chegara o momento; emprestei minha consciência à criança, à jovem abandonada no fundo do tempo perdido e com ele perdida. Fiz com que existissem em preto e branco no papel. Meu projeto não ia mais longe. Adulta, cessei de invocar o futuro; quando terminei minhas Memórias, nenhuma voz se erguia em meu passado para incitar-me a continuá-las. Eu estava decidida a empreender outra coisa. E eis que não consegui. Invisível, em baixo da última linha, desenhara-se um ponto de interrogação de que não pude desviar o pensamento. A Liberdade: para quê? Toda essa desordem, esse grande combate, essa evasão, essa vitória, que sentido minha vida lhes devia dar? Meu primeiro impulso foi entrincheirar-me atrás de meus livros; que nada, eles não me trazem nenhuma resposta: eles é que estão em discussão. Resolvera escrever; escrevi, concordo: mas para quê? Por que esses livros, somente esses, exactamente esses? Eu queria mais, ou menos? Não há medida comum entre a esperança vazia e infinita de meus vinte anos e uma obra acabada. Eu queria ao mesmo tempo muito mais e muito menos. Pouco a pouco me convenci de que o primeiro volume de minhas recordações exigia a meus próprios olhos uma continuação: fora inútil ter contado a história de minha vocação de escritora se não tentasse dizer como se encarnara. Ademais, reflectindo bem, o projecto me interessa em si. Minha existência não terminou, mas já possui um sentido que, verossimilmente, o futuro não modificará muito. Qual? Por motivos que no decorrer dessa investigação precisarei tirar a limpo, evitei perguntar a mim mesma. Está na hora, ou nunca, de sabê-lo. Dirão talvez que uma tal preocupação só diz respeito a mim; mas não, Samuel Pepys ou Jean-Jacques Rousseau, medíocre ou excepcional, se um indivíduo se exprime com sinceridade, todo mundo, mais ou menos, se acha em jogo. É impossível lançar alguma luz sobre a própria vida sem iluminar, em algum ponto, a dos outros. De resto, os escritores são atormentados por perguntas: porque escreve? Como passa seus dias? Para além do gosto pelas anedotas e bisbilhotices, parece que muitas pessoas desejam compreender que modo de vida representa a literatura. O estudo de um caso particular informa melhor do que as respostas abstractas e gerais; é o que me anima a examinar o meu. Talvez esta exposição ajude a dissipar certos mal-entendidos que separam sempre os autores de seu público e cujo dissabor senti muitas vezes; um livro só adquire o seu sentido verdadeiro quando se sabe em que situação, em que perspectiva foi escrito e por quem. Gostaria de explicar os meus, falando aos leitores de pessoa para pessoa. Entretanto, devo preveni-los de que não pretendo dizer tudo. Contei minha infância e minha juventude sem nada omitir; mas se pude sem embaraço nem demasiada indiscrição pôr a nu meu longínquo passado, não experimento em relação à minha idade adulta o mesmo desapego, não disponho da mesma liberdade. Não se trata aqui de tagarelar acerca de mim mesma e de meus amigos; não gosto de intrigas. Deixarei resolutamente na sombra muitas coisas. Por outro lado, minha vida viu-se estreitamente ligada à de Jean-Paul Sartre; mas sua história, ele espera contá-la ele próprio, e deixo-lhe a tarefa. Só estudarei suas ideias, seus trabalhos, só falarei nele à medida que interveio em minha existência. Certos críticos acreditaram que em minhas Memórias eu tivesse querido dar uma lição às jovens; desejei sobretudo pagar uma dívida. Este relatório apresenta-se em todo o caso isento de qualquer preocupação moral. Atenho-me a testemunhar o que foi minha vida. Nada prejulgo, a não ser que toda a verdade pode interessar e servir. A que é a quem servirá o que tento exprimir nestas páginas? Ignoro. Desejaria que fossem abordadas com idêntica inocência.
O que me inebriou quando voltei a Paris, em Setembro de 1929, foi primeiramente minha liberdade. Com ela sonhara desde a infância, quando brincava de gente grande com minha irmã. Já disse como ansiava apaixonadamente por ela, quando estudante. Repentinamente eu a possuía; a cada gesto eu me maravilhava com minha leveza. Ao abrir os olhos pela manhã, agitava-me jubilante. Por volta dos meus doze anos, sofrera por não ter um canto meu em casa. Lendo em Mon Journal a história de uma colegial inglesa, contemplara com nostalgia o cromo que representava o quarto dela: uma carteira, um sofá, prateleiras cheias de livros; entre aquelas paredes de cores vivas, ela trabalhava, lia, tomava chá, sem testemunhas: como a invejava! Entrevira pela primeira vez uma existência mais favorecida do que a minha. E eis que afinal eu também estava em minha casa! Minha avó livrara-se de todas as poltronas, mesinhas e bibelôs de seu salão. Eu comprara móveis de bétula que minha irmã ajudara a envernizar de escuro. Tinha uma mesa, duas cadeiras, um grande baú que servia também de assento, prateleiras para os meus livros, um sofá combinando com o papel alaranjado das paredes. Da sacada do meu quinto andar, eu dominava os plátanos da rua Denfert-Rochereau e o Lion de Belfort. Aquecia-me com um fogareiro vermelho a querosene que cheirava mal, e eu gostava desse cheiro porque sentia que defendia minha solidão». In Simone Beauvoir, A Força da Idade, 1960, Editora Nova Fronteira, 2009, ISBN 978-852-093-661-0.

Cortesia de ENFronteira/JDACT