segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Vítimas da Tradição. Jean Sasson. «Em seguida, ela e Amani escolheram deliberadamente ocupar lados opostos da sala, representando o papel de perfeitas desconhecidas»

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«(…) Quando Amani tentou espreitar por baixo do corpo da irmã para se certificar de que não estava lá nenhum gatinho escondido, Maha, enfurecida, bateu com o cotovelo no rosto da irmã partindo-lhe um dente. Embora na altura aquilo não tivesse sido nada divertido, pois Kareem e eu tivemos de explicar ao médico da família a constrangedora natureza dos ferimentos das nossas filhas, o comentário de Sara e a sua natureza apaziguadora constituíram o antídoto perfeito para a raiva. Kareem e eu trocámos olhares e rimo-nos a bom rir da memória daquele tempo longínquo em que o comportamento das nossas filhas não raro se assemelhava ao de duas feras selvagens que andassem à solta na nossa casa. Amani, sem pitada de humor, não aprovou as nossas gargalhadas. Afastou-se do pai, sacudindo o vestido com a mão como se o sucedido fosse insignificante. Em seguida, cumprimentou a tia Sara com uma troca rotineira de beijos, mudando de assunto e inquirindo-a sobre a sua neta doente, cuja curta vida fora recentemente ameaçada por um ataque grave de tosse convulsa. Maha, triunfante como um guerreiro conquistador, sacudiu-se da mãe e tocou afectuosamente no ombro da tia predilecta, antes de se servir de uma bebida fresca feita de limões acabados de espremer. Em seguida, ela e Amani escolheram deliberadamente ocupar lados opostos da sala, representando o papel de perfeitas desconhecidas.
Amo as minhas duas filhas tanto quanto qualquer mãe ama a sua prole mas, mesmo adultas, elas continuam a testar a minha paciência. Anos atrás, agarrara-me à esperança de que a idade adulta lhes trouxesse maturidade, mas infelizmente enganei-me. Olhando para elas, vi que ambas ostentavam uma expressão de sobranceira satisfação. Contive um desejo intenso de lhes dar dois estalos. Enquanto fazia conversa com Sara e Kareem, não deixava de pensar na nossa vida, perguntando-me como é que duas filhas dos mesmos pais não conseguiam encontrar um ponto de concórdia. Desde a juventude que as nossas filhas chocavam em todos os aspectos da nossa vida de sauditas. Maha é uma rapariga forte e independente que desde tenra idade teve uma consciência aguda dos constrangimentos culturais e sociais impostos às mulheres da Arábia Saudita. Ao longo dos anos, a sua raiva inflamou-se perante as injustiças dos nossos costumes sociais com respeito ao género; passou a detestar cada restrição e era frequente declarar a sua determinação em testar todas elas. Amani abraçou as convicções mais tradicionais da nossa terra, contanto que se dirigem-se às mulheres. Havia alturas em que me parecia que Amani acreditava que os grilhões que confinavam as mulheres não eram suficientemente fortes.
Com o tempo, cheguei à triste conclusão de que as mulheres da Arábia Saudita estavam mais bem governadas por clérigos que detestavam mulheres do que por uma mulher conservadora como a minha filha. Muitas foram as vezes em que pus em causa as minhas capacidades como mãe, perguntando-me o que desviara a minha Amani, outrora tão doce e dócil. Após anos de episódios e ocorrências traumáticos, a tranquilidade bafejou o nosso lar, mas só depois de Maha persuadir os pais de que nunca conheceria a verdadeira felicidade enquanto fosse obrigada a viver na Arábia Saudita. Kareem e eu sentíamo-nos verdadeiramente preocupados com a possibilidade de ela de facto testar cada rigorosa lei social e tribal que versasse as mulheres, caso fosse obrigada a residir no reino. A nossa Maha é uma rapariga audaz, intrépida e inabalável face à autoridade. Talvez cometesse algum acto considerado culturalmente tão grave que se levantasse um coro de reprovação da comunidade seguido de clamores para que o nosso tio, o rei, fizesse da nossa filha um caso exemplar. Depois de muitas conversas prolongadas, Kareem e eu diligenciámos para que Maha frequentasse uma universidade na Europa. Para nossa felicidade, a personalidade agressiva da nossa filha aligeirou-se consideravelmente depois de ela ir para fora. Estava tão satisfeita na Europa que acabámos por aceitar que construiria o seu lar longe do nosso reino do deserto. Daquela altura em diante, Maha fazia apenas raras visitas à Arábia Saudita, embora nós a visitássemos muitas vezes». In Jean Sasson, Vítimas da Tradição, 1992, Edições ASA, Grupo Leya, 2015, ISBN 978-989-233-039-6.

Cortesia ASA/JDACT