segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Os filhos do Graal. Peter Berling. «No final do Outono, chegou o corpo de montanheses procedente do distante país basco. Meu senhor, o senescal, não quis que acampassem entre os outros, por isso conduziu-os pessoalmente…»

jdact e wikipedia

Montségur. 1243
«(…) Por favor, Pierre-Roger, a jovem colocou a mão em seu ombro, não espere nada do mundo exterior, pois que só o que se consegue assim é fechar os olhos diante da visão das portas do Paraíso. O Paraíso é a certeza que ninguém pode nos tirar! E despediu-se com um sorriso alegre. Entretanto, o Montségur ficara envolto nas trevas da escuridão nocturna, ao mesmo tempo que as estrelas luziam com um brilho mais claro. Em baixo, no vale, as fogueiras ardiam, mas as canções obscenas, os gritos das prostitutas e as blasfémias dos soldados entretidos no jogo de dados e com a bebida não chegavam até o alto da montanha. O ambiente no acampamento deixava muito a desejar. Aproximava-se o Outono. Há mais de meio ano estavam acampados naquele lugar, e embora nos primeiros dias alguns atrevidos tivessem pretendido assaltar o monte, confiando em suas próprias forças, fracassaram em todas as tentativas. Sua situação estratégica e as poderosas defesas da fortaleza vinham resistindo durante mais de duas gerações a todos os ataques. O senescal sabia disso e mantinha-se na expectativa apesar das contínuas pressões do legado, mas também Hugues des Areis mostrava-se cada vez mais irritado conforme transcorriam os entediantes dias de espera ao pé do pog. Ordenou aos seus capelães que rezassem missa várias vezes ao dia, como se suas orações pudessem melhorar a situação militar. Certa noite em que se apresentara ao franciscano, para rezar com ele, teve uma súbita revelação. Caçadores da montanha do país basco!, alfinetou William, que, obedecendo ao costume, já ajoelhara. Deveríamos contratá-los de imediato, ainda que nos custem muito dinheiro, mesmo que seja quase impossível que entrem num acordo antes de terem recolhido suas colheitas. Santificado seja o nome do Senhor e da Santíssima, começou William. Levanta esse traseiro flamengo, retrucou o senescal, e dê-me a jarra. A ideia merece um brinde!

Os montanheses. Montségur, Inverno de 1243-44
No final do Outono, chegou o corpo de montanheses procedente do distante país basco. Meu senhor, o senescal, não quis que acampassem entre os outros, por isso conduziu-os pessoalmente para além do pog, debaixo do Roc de la Portaille, onde a parede rochosa ascende tão verticalmente que de baixo apenas se pode antever a grande torre central do Montségur. Ao chegar, permitiu que descansassem. Fui o único escolhido para acompanhá-los, o que provocou inveja em meus companheiros. À tarde voltámos a empreender a marcha, deslizando um por um debaixo da parede norte, protegidos de qualquer olhar devido aos altos pinheiros do bosque de Serralunga, cujos limites chegam até o mesmo rochedo. Caminhando atrás de Gorka, um dos chefes bascos, a duras penas conseguia manter-me ao ritmo de seus passos e ao mesmo tempo sustentar uma conversa na qual nos servíamos de uma mistura de vozes italianas e latinas. Não tinha a mínima ideia da direcção que tomava nossa expedição secreta. Roc de laTour, informou-me Gorka sem mais rodeios. Ofegante, eu tropeçava pelo caminho. Para quê? Para cortar o chouriço, é preciso atá-lo primeiro. Parece que se esqueceram desse detalhe. Calei-me. Por um lado, porque suas palavras me fizeram sentir fome imediatamente, e por outro também porque a mesma ideia da comida me fez pensar de imediato no Santo Graal, de quem todos estavam falando no acampamento, mas sobre o qual ninguém conseguia dar uma resposta minimamente satisfatória. Devia tratar-se de alguma coisa superior a um tesouro, de uma espécie de bebida reconfortante que já não fazia sentir sede nunca, de um maná celestial que livraria um pobre frade como eu de toda fadiga terrena. Não estamos buscando um tesouro, o tal do Graal?, prossegui, indagando com certo recato, pois me dava vergonha não saber melhor das coisas e porque vira diversas vezes as reacções mais estranhas de enfado quando um de nós perguntava pelo motivo real daquela cruzada. Pois não, William, sorriu Gorka. Vamos à conquista de um monte de pedras que não valem nada, com que até a presente data ninguém se preocupou, razão pela qual elas se converteram, para os defensores do Montségur, numa cómoda abertura pela qual recebem as suas provisões. Mas nós somos o gato que a partir de agora vigiará essa ratoeira!» In Peter Berling, Os filhos do Graal, 1991, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 1996, ISBN 978-972-231-982-9.

Cortesia de EPresença/JDACT