sábado, 10 de setembro de 2016

O Pecado Espanhol. Carlota Joaquina. Marsilio Cassotti. «De algo tão difícil como a formação do carácter ocupava-se outra parte do Método que tinha como finalidade regular toda a conduta da criança, desde que se levantava até que se deitava»

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«(…) Ao contrário das cartas realmente manuscritas que nos chegaram da sua mãe, as de Carlota Joaquina demonstram que ela conhecia bem a língua castelhana. A sua ortografia não revela qualquer hesitação, e a sua sintaxe é de uma correcção e clareza que ainda hoje é possível ler com agrado, uma vez que utilizava um castelhano simples, mas muito expressivo. No entanto, com o tempo a sua língua materna ir-se-ia misturando com formas de expressão e com palavras de origem portuguesa. Uma vez acabado o estudo da gramática castelhana, a infanta começaria a ter lições pertencentes ao capítulo intitulado Escola de Aritmética. E só depois começaria a receber instrução religiosa. Esta hierarquia das disciplinas, à primeira vista, poderia surpreender um pouco, uma vez que o seu professor era um sacerdote e ela nada menos do que a neta do Rei Católico. Mas este é igualmente um dado importante sobre a modernidade de critério da suposta educação recebida pela infanta numa matéria que, devido às suas origens, devia ter uma importância fundamental, e que é possível que tenha tido uma grande influência sobre ela. Na realidade, até ao seu regresso do Brasil, as fontes falam de uma Carlota nada supersticiosa, em matéria de religião.
Em todo o caso, o modo racional, como ela aprendeu, possivelmente, essa disciplina nos seus primeiros anos está muito bem expresso no título do capítulo dedicado a essa matéria: breves fórmulas, com as quais as crianças poderão tornar as suas preces mais simples, adaptadas das que a igreja prescreve para os Fiéis, mas postas em linguagem vulgar, para que entendam o que oram até atingirem a idade de as poder compreender na língua da própria Igreja. Um título que fazia referência ao entendimento da oração era em si próprio uma declaração de princípios, sobre os melhores aspectos do Iluminismo na sua versão espanhola, que aceitava que a razão não tinha de entrar em competição com a tradição.
De algo tão difícil como a formação do carácter ocupava-se outra parte do Método que tinha como finalidade regular toda a conduta da criança, desde que se levantava até que se deitava. Algo que para o temperamento de uma menina um pouco caprichosa, como parece ter sido Carlota, podia ter uma grande importância. Evidentemente que, a julgar pelos dados que existem sobre os seus primeiros anos na corte de Lisboa, não parece que o ensino dessa parte do método tenha tido muito resultado com ela. Não, pelo menos, como as lições de equitação e de dança, actividades nas quais, sem dúvida alguma, a infanta sempre sobressairia.
Enquanto prosseguiam muito lentamente as negociações matrimoniais para casar o infante João com a arquiduquesa florentina, e a sua futura mulher continuava a ser educada por uma eminência intelectual, a mãe desta voltava a sofrer mais um dos seus habituais abortos, e em Portugal estava para ser emitida a sentença condenatória, mas muito branda, do desterrado Pombal. Nesse mesmo ano (1781) morreu a tainha-viúva de Portugal, dona Maria Ana Vitória, pelo que a candidatura encoberta de Carlota Joaquina a mulher do infante João perderia uma das suas maiores defensoras. O destino da candidata encoberta a casar-se com o infante também não se iria definir nos doze meses seguintes, os mais vertiginosos na corte de Madrid do período em que Carlota viveu nela, já que durante esses meses se produziu no seu seio uma importante intriga dinástica, o que deverá ter influenciado notoriamente a sua forma de entender de que maneira era possível conseguir o poder. O ano de 1782 tinha começado com um sabor agridoce para a sua família, uma vez que o nascimento de uma nova infanta ocorreu apenas quatro dias após a morte da infanta Maria Luísa, a irmã, que tinha nascido depois de Carlota e com a qual se sentia mais afeiçoada.
No quarto dos príncipes das Astúrias, como se chamava aos aposentos onde residiam os seus pais, vivia-se igualmente um crescente estado de frustração, em primeiro lugar devido ao delicado estado de saúde do infante Carlos Eusébio, único varão sobrevivente ao fim de dezassete anos de casados dos seus pais. Em segundo, porque, não obstante o apoio do conde de Floridablanca em relação ao matrimónio da infanta Carlota com o infante português, Maria Luísa começava a pensar que a sua primogénita estava a ser preterida em benefício da arquiduquesa florentina. Na realidade, naquele momento, o nome desta era o único mencionado nas negociações que Floridablanca encetava com o marquês de Louriçal, gentil-homem da câmara da rainha dona Maria, encarregado de tais compromissos pela parte portuguesa». In Marsilio Cassotti, Carlota Joaquina, O Pecado Espanhol, tradução de João Boléo, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-626-170-2.

Cortesia EdosLivros/JDACT