domingo, 11 de setembro de 2016

Afonso Henriques. O Homem. Cristina Torrão. «Passados treze anos e três filhas, o herdeiro nascera, finalmente. Henrique até chegara a sentá-lo no seu colo, afagara-lhe os caracóis escuros e sorrira-lhe…»

jdact e wikipedia

Guimarães. Maio de 1112
«(…) O novelo dos cachorrinhos mal se distinguia do corpo da perdigueira. Afonso desejou ser um deles, dormindo um sono descansado, carinhosamente protegido pela mãe. Dona Teresa nunca assim o aconchegara... Recordou os olhos chorosos da ama, as palavras ecoaram-lhe na cabeça: deixou-nos um herdeiro tão pequenino, o nosso bondoso senhor. Afonso receava saber o que sucedera em Astorga. Ouvira falar do tal cerco, perpetrado por el-rei de Aragão, a quem chamavam o Batalhador. Depois de contrair matrimónio com a sua tia Urraca, o aragonês chegara a lutar ao lado de seu pai, contra os mouros. Mas, depois da anulação do casamento pelo papa, tudo se complicou. As aias e a ama falavam de intrigas que o pequeno não entendia. Deus não podia consentir que seu pai morresse. Conde Henrique, neto do duque Roberto da Borgonha, juntara-se ao imperador Afonso VI da Hispânia na luta contra os infiéis. O imperador nomeara-o sucessor dos antigos condes de Portucale, descendentes de Vímara Peres, o fundador de Guimarães, e dera-lhe sua filha Teresa em casamento. Passados treze anos e três filhas, o herdeiro nascera, finalmente. Henrique até chegara a sentá-lo no seu colo, quando reunido com os ricos-homens e os infanções da sua corte. Afagara-lhe os caracóis escuros e sorrira-lhe, ignorando o agastamento dos senhores com aquela demonstração de afectos em público. Afonso não se recordava que sua mãe o houvesse sentado no seu colo. Nem lhe afagava os cabelos. Deixava essas frivolidades por conta das amas. A trovoada não cessava. O pequeno olhou para a porta do estábulo, imaginando o conde Henrique a cruzá-la. Haveriam de surgir juntos no salão, surpreendendo tudo e todos... Fixou a porta tanto tempo, que ela começou a desfocar, à medida que os suores aumentavam e tudo parecia girar à sua volta. Estava prestes a vomitar, quando ouviu alguém chamar por ele. Recordou-se que Egas Moniz lhe queria falar. Na esperança de que o bondoso fidalgo pusesse ordem naquele serão tão conturbado, sentiu novas forças, que lhe permitiram levantar-se e deixar o estábulo.
A frescura da chuva acabou por lhe afastar o enjoo. Ao chegar à escada da torre, deu com um lacaio embrulhado num capote, que lhe disse estar farto de procurar por ele. A senhora vossa mãe está mais brava do que uma fêmea de javali a quem lhe atacam as crias! Apenas dona Teresa e os irmãos de Ribadouro se encontravam agora no salão, sentados a uma ponta da mesa, onde ardiam velas num candelabro. Nem repararam no pequeno, que se esgueirou para a reentrância da janela, onde Egas Moniz o havia deixado. Não percamos a esperança, exigia a voz segura de sua mãe. Com a desordem que se gerou, depois da morte do imperador, replicou Ermígio Moniz, quem consegue olhar com esperança para os tempos vindouros? Os conflitos entre Braga e Santiago de Compostela intensificam-se, recordou Egas Moniz. Também Santiago de Compostela ficará sob a minha jurisdição, retorquiu dona Teresa, assim que me apoderar da minha parte da herança de meu pai. Os irmãos encaram-na estupefactos, ela acrescentou: recuso-me a reconhecer minha irmã como única herdeira do imperador e reclamo a Galiza, além do condado Portucalense. Acaso olvidais, retorquiu Ermígio, que vosso sobrinho Afonso Raimundes foi coroado rei da Galiza na catedral de Santiago? Teresa fungou, impaciente: tudo por obra e graça do arcebispo Gelmírez, a fim de reforçar a sua primazia sobre Braga.
Mas o pequeno é o neto mais velho do falecido imperador, recordou Egas. Pois que fique com Leão e Castela! Mas a Galiza faz parte da minha herança! Os irmãos entreolharam-se, remetendo-se ao silêncio. Egas Moniz suspirou, olhando para o lado... E os seus olhos cruzaram-se com os de Afonso, amedrontado, naquele canto. Santo Deus, mas que fazes aí sozinho? Chega-te a nós! Afonso aproximou-se devagar, as pernas ameaçavam ceder a cada passo. Ouviu a voz severa da mãe: onde estiveste metido? Não me digas que te enfiaste outra vez no estábulo, com os cães! O teu pai não resistiu aos ferimentos infligidos em combate. Mostra respeito pela sua morte e olvida, por uma vez, as brincadeiras com o diabo dos animais! Acometido pela náusea, Afonso segurou-se no canto da mesa e pousou a testa suada nos nós dos dedos. A sua respiração vinha aos arrancos, misturava-se com os vómitos. Enquanto Egas Moniz lhe afagava os ombros, Teresa continuou, impassível: já vai sendo tempo de te entregar a um aio, que te ensine maneiras. Calha bem. Como sabeis, meus senhores, o meu falecido esposo expressou o desejo de confiar o seu herdeiro nas vossas mãos. Os irmãos de Ribadouro expressaram a honra que lhes conferia ser-lhes confiada tão prestigiante tarefa. Ao pequeno também agradou o pensamento de ir viver com aquela família, agora que nunca mais veria o sorriso de seu pai... A mesa pareceu diluir-se no ar e Afonso mergulhou na escuridão». In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.

Cortesia de Ésquilo/JDACT