segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Samarcanda. Amir Maalouf. «Terá sido esta visão de paraíso que pretendeu evocar o pintor anónimo que, muito mais tarde, tentou ilustrar o manuscrito dos Robaiyat? Será, ainda ela que Omar conserva no espírito»

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Poetas e amantes
«(…) Enquanto Jaber, o Longo, esquecido por todos, rasteja para a taberna mais próxima e se esgueira lá para dentro, prometendo a si próprio nunca mais se aventurar lá fora, Omar consegue reerguer-se sem a ajuda de ninguém. Caminha direito, em silêncio; o seu trejeito altivo cobre, como um púdico véu, as suas vestes esfarrapadas e o seu rosto ensanguentado. À sua frente, milicianos munidos de archotes abrem passagem. Atrás dele, vêm os seus agressores, seguidos do cortejo de basbaques. Omar não os vê, não os ouve. Para ele, as ruas estão desertas, a Terra está silenciosa e o céu sem nuvens, e Samarcanda continua a ser o lugar de sonho que ele descobriu alguns dias antes. Chegou ali após três semanas de viagem e, sem tomar o mínimo repouso, decidiu seguir à risca os conselhos dos viajantes de tempos idos. Subi, convidam eles, ao terraço do Kuhandiz, a velha cidadela, passeai amplamente o vosso olhar: não vereis senão águas e verdura, canteiros floridos e ciprestes podados pelos mais subtis jardineiros, em forma de bois, de elefantes, de camelos agachados, de panteras que se defrontam e parecem prontas a saltar. De facto, no próprio interior do recinto, da porta do mosteiro, a oeste, até à Porta da China, Omar apenas viu densos pomares e riachos cristalinos. Depois, aqui e além, o arremesso de um minarete de tijolo, uma cúpula cinzelada de sombra, a brancura do muro de um mirante. E, à beira de um charco, acobertada pelos chorões, uma banhista nua que expunha a cabeleira ao vento ardente. Terá sido esta visão de paraíso que pretendeu evocar o pintor anónimo que, muito mais tarde, tentou ilustrar o manuscrito dos Robaiyat? Será, ainda ela que Omar conserva no espírito, enquanto o levam para o bairro de Asfizar, onde mora Abu Taher, o cádi dos cádis de Samarcanda? Dentro de si, ele não cessa de repetir: não odiarei esta cidade. Mesmo que a minha banhista seja apenas uma miragem. Mesmo que a realidade tenha o rosto do homem da cicatriz. Mesmo que esta noite fresca venha a ser para mim a última.
No vasto divã do juiz, os longínquos candelabros dão a Khayyam uma tez de marfim. Assim que entrou, dois, guardas de uma certa idade agarraram-no pelos ombros, como se ele fosse um fanático perigoso. E, nesta postura, aguarda ao pé da porta. Sentado no outro lado do compartimento, o cádi não reparou nele; está a acabar de resolver um caso, conversa com os queixosos, argumenta com um deles, admoesta o outro. Uma querela antiga entre vizinhos, segundo parece, rancores repisados, argúcias irrisórias. Abu Taher acaba por manifestar ruidosamente a sua lassidão, ordena aos dois chefes de família que se beijem, ali, à sua frente, como se nada alguma vez os tivesse separado. Um deles dá um passo; o outro, um colosso de testa estreita, retrai-se. O cádi esbofeteia-o com toda a força, fazendo tremer a assistência. O gigante contempla por instantes aquela personagem rechonchuda, colérica e buliçosa, que teve de se içar para o atingir, e depois baixa a cabeça, limpa a face e obedece. Depois de mandar embora toda esta gente, Abu Taher faz sinal aos milicianos para que se aproximem. Eles debitam o seu relatório, respondem a algumas perguntas, esforçam-se por explicar como puderam deixar que se formasse um tal ajuntamento nas ruas. Chega a vez de o homem da cicatriz se justificar. Ele inclina-se para o cádi, que parece conhecê-lo de longa data, e inicia um animado monólogo. Abu Taher escuta-o atentamente, sem deixar adivinhar o seu sentimento. Depois, após alguns momentos de reflexão, ordena: dizei à multidão que se disperse. Que todos regressem a suas casas pelo caminho mais curto. E, dirigindo-se aos agressores: vós voltai igualmente para vossas casas! Nada será decidido antes de amanhã. O arguido ficará aqui esta noite, os meus guardas, e só eles, vigiá-lo-ão. Surpreendido por se ver tão depressa convidado a eclipsar-se, o homem da cicatriz esboça um protesto, mas logo reconsidera. Prudente, levanta as abas da túnica e retira-se com uma vénia.
Ao achar-se frente a Omar, tendo por únicas testemunhas os seus próprios homens de confiança, Abu Taher profere esta enigmática frase de acolhimento: é uma honra receber neste lugar o ilustre Omar Khayyam de Nichapur. Nem irónico nem caloroso, o cádi. Nem a mínima aparência de emoção. Tom neutro, voz inexpressiva, turbante em forma de túlipa, sobrancelhas fartas, barba grisalha sem bigode, interminável olhar perscrutador. O acolhimento é tanto mais ambíguo, pois Omar estava ali há uma hora, de pé e esfarrapado, sujeito a todos os olhares, aos sorrisos, aos murmúrios. Após alguns segundos sabiamente destilados, Abu Taher acrescenta: Omar, não és um desconhecido em Samarcanda. Apesar da tua juventude, a tua ciência é já proverbial, as tuas proezas são contadas nas escolas. Não é verdade que leste sete vezes, em Ispaão, uma volumosa obra de Ibn Sina, e que, de regresso a Nichapur, a reproduziste de memória, palavra por palavra?» In Amir Masalouf, Samarcanda, 1988, tradução de Paula Caetano, Editorial Presença, Marcador Editora, 2015, ISBN 978-989-754-102-5.

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