domingo, 21 de agosto de 2016

O Mundo de Sofia. Jostein Gaarder. «Era o começo de Maio. Nalguns jardins, os narcisos formavam coroas de flores sob as árvores de fruto. As bétulas tinham uma fina penugem verde. Não era estranho que nessa estação do ano tudo começasse a crescer e a desenvolver-se?»

jdact e wikipedia
«...algo teria de surgir a certa altura do nada... 
«Sofia Amundsen regressava da escola. Percorrera com Jorunn o primeiro trecho do caminho. Tinham conversado sobre robôs. Para Jorunn, o cérebro humano era um computador complexo. Sofia não estava de acordo. Um homem deveria ser algo mais do que uma máquina. No supermercado, despediram-se. Sofia morava no extremo de um extenso bairro de residências e o caminho que tinha de percorrer para a escola era quase o dobro do de Jorunn. A sua casa parecia ficar no fim do mundo, porque atrás do jardim já não havia casas, apenas floresta. Seguiu para Klöverveien. No fim da rua, havia uma curva estreita, a que chamavam a Curva do Capitão, e onde quase só ao fim-de-semana se viam pessoas. Era o começo de Maio. Nalguns jardins, os narcisos formavam coroas de flores sob as árvores de fruto. As bétulas tinham uma fina penugem verde. Não era estranho que nessa estação do ano tudo começasse a crescer e a desenvolver-se? Porque é que essa massa de plantas verdes podia nascer da terra inanimada logo que o tempo ficava mais quente e os últimos vestígios de neve tinham desaparecido? Sofia espreitou para a caixa do correio antes de abrir o portão do jardim. Geralmente havia muita publicidade e alguns envelopes grandes para a sua mãe. Sofia colocava sempre um monte de cartas na mesa da cozinha, indo depois para o quarto fazer os trabalhos de casa. Para o seu pai chegavam por vezes cartas do banco, mas ele também não era um pai comum. O pai de Sofia era capitão num petroleiro e estava fora quase todo o ano. Quando regressava a casa por poucas semanas, passeava de chinelos pela casa, e cuidava de Sofia e da mãe de uma forma enternecedora. No entanto, quando estava em viagem, podia parecer muito distante. Nesse dia havia apenas uma pequena carta na grande caixa do correio, e era para Sofia. Sofia Amundsen estava escrito no pequeno envelope. Era tudo, sem remetente. A carta nem sequer tinha selo. Imediatamente após ter fechado o portão, Sofia abriu o envelope. Encontrou uma pequena folha, que não era maior do que o respectivo envelope. Na folha estava escrito: quem és tu? Mais nada. Não havia assinatura, apenas estas três palavras escritas à mão, seguidas de um grande ponto de interrogação. Observou uma vez mais o envelope. Sim, a carta era de facto para si, mas quem é que a tinha posto na caixa do correio? Sofia apressou-se em abrir a porta da casa vermelha. Como de costume, o gato Sherekan saiu furtivamente dos arbustos, saltou para o patamar e enfiou-se em casa, antes de Sofia fechar a porta. Bichano, bichano, bichano! Se, por algum motivo, a mãe de Sofia estava zangada, dizia que a sua casa parecia uma feira de animais. Uma feira de animais era uma colecção de animais diversos e, na realidade, Sofia estava bastante satisfeita com a sua colecção. No início, tinha recebido um aquário com os peixes dourados Caracolinho Dourado, Chapeuzinho Vermelho e Diabrete. Mais tarde, foi a vez dos periquitos Tom e Jerry, a tartaruga Govinda e finalmente o gato amarelo Sherekan. Todos aqueles animais eram uma espécie de compensação pelo facto de a sua mãe chegar tarde a casa e de o seu pai estar quase sempre a viajar. Sofia atirou a mala da escola para um canto e pôs um prato com comida de gato para Sherekan. Depois, foi sentar-se num banco da cozinha, com a misteriosa carta na mão. Quem és tu? Se ela soubesse! Era obviamente Sofia Amundsen, mas quem era Sofia Amundsen? Ainda não tinha descoberto totalmente. E se tivesse outro nome? Anne Knutsen, por exemplo. Seria então uma outra pessoa? Subitamente, lembrou-se de que o seu pai inicialmente gostaria de ter lhe dado o nome Synnöve. Sofia procurava imaginar como seria se cumprimentasse alguém e se se apresentasse como Synnöve Amundsen, mas não, não conseguia. Imaginava sempre uma outra pessoa. Saltou do banco e, com a estranha carta na mão, dirigiu-se para o quarto de banho. Colocou-se em frente do espelho, e olhou-se fixamente nos olhos. Eu sou Sofia Amundsen, disse. A moça do espelho nem sequer respondeu com uma careta. Aquilo que Sofia fizesse, ela fá-lo-ia exactamente da mesma forma. Sofia procurava adiantar-se em relação ao espelho com um movimento muito rápido, mas a outra era igualmente rápida». In Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia, 1991, Editorial Presença, 1995, ISBN 978-972-231-949-2. 

Cortesia de EPresença/JDACT