quarta-feira, 17 de agosto de 2016

O Destino de Adhara. Licia Troisi. «Um aperto gelado envolveu suas têmporas. Passou a mão no peito, onde o coração marcava o tempo da sua ansiedade. Peitos, pequenos e empinados. Sou uma mulher»

jdact e wikipedia

«(…) Procure manter-se de pé, eu lhe peço..., gemeu. Curvou-se para entrar na passagem. A criatura se queixava, mas finalmente começava a mexer-se. Isso mesmo, vamos lá... Roçava nas paredes húmidas de musgo. Logo atrás, a criatura avançava a duras penas. Os ruídos da luta abafaram-se à distância, e o coração de Adrass deteve a sua louca corrida. Posso conseguir, acho que posso conseguir... Por aqui!, berrou, virando-se ao chegar à primeira bifurcação, e continuou em frente, até parar diante de uma parede. Chegámos, chegámos, disse mais para si mesmo do que para a criatura. Com mãos trémulas empurrou um tijolo e, à sua frente, descortinou-se um minúsculo aposento. Segurou um braço da criatura e empurrou-a para dentro. Ela ensaiou um gemido de queixa. Quando passou a mão no seu rosto, percebeu que estava molhado. Ela estava chorando. Por um momento, o homem ficou com pena, sentiu um aperto no coração. Lembrou as palavras do Vidente: as criaturas não passam de meros objectos. São os instrumentos da nossa salvação, e é deste jeito que devem ser consideradas. Não pensem nelas como pessoas; não são nada disto. Livrem-se de qualquer pena ou afeição que possam porventura sentir por elas: estes sentimentos seriam meros estorvos no cumprimento da nossa missão. Adrass recuperou o controle de si mesmo. Agora fique em silêncio, está entendendo? Fique aqui, não se mexa e espere por mim. Não vou demorar, está bem? A criatura anuiu molemente. Isso mesmo! Adrass não conteve um sorriso. Não saia daqui por nenhum motivo. Fechou então a porta de tijolos e ficou ali, parado, por alguns instantes. Não se ouvia qualquer ruído. Talvez a criatura tivesse compreendido. Concedeu-se alguns momentos de descanso. Já podia morrer em paz, agora. Quem sabe aquele ser patético que jazia do outro lado pudesse de facto salvá-los todos. De qualquer maneira, ele tinha cumprido com o seu dever. Fez todo o caminho de volta. O homem de preto não se deteve diante de coisa alguma. Já fazia um bom tempo que não se entregava a tamanha fúria, desde aquele longínquo dia em que fora capturado e travara conhecimento com Kriss. A sensação do próprio corpo que se movimentava com precisão, o leve entorpecimento dos músculos sob tensão, o cheiro de sangue..., era algo que o inebriava, que lhe dava prazer. Matou todos, ndistintamente. Os soldados e os mandatários, os jovens e os velhos, e as moças, principalmente as moças. Afinal de contas, tinha vindo por causa delas. Pobres coisinhas nas mãos daqueles bruxos insanos. Por um momento chegou até a pensar que estava lhes fazendo um favor. Aqui está o mundo que você ajudou a criar, Mestre. Talvez você estivesse certo, naquele dia, quando decidiu ir embora e repudiá-lo. Em seguida derrubou a derradeira porta. Ele estava lá. Segurando antigos livros e pergaminhos. Seus dedos tremiam. O Vidente, o chefe daquele grupo de loucos. O homem de preto avançou devagar. Atrás dele, a sua espada deixava um rasto de sangue. Um só homem?, disse o Vidente, incrédulo. Só um, respondeu ele, com um sinistro sorriso. O Vidente deu um passo para trás, encostando-se na parede. Quem o mandou? Ninguém. E mesmo que lhe contasse quem é o meu soberano, você não saberia de quem estou falando. O Vidente ficou por alguns instantes calado. Nós estamos salvando o Mundo Emerso, será que não se dão conta disto? Continuam prestando atenção nos delírios daquela velha doida? Sem nós só haverá o caos, a morte! Não dou a mínima para o caos e a morte. E menos ainda para a salvação do mundo. Apesar da máscara que lhe ocultava o rosto, o homem de preto percebeu todo o desespero do Vidente. Você não passa de um louco. Pode ser. Um só golpe de espada, e o Vidente tombou no chão. A Congregação dos Vigias tinha deixado de existir.

O despertar
Calor. Alguma coisa que espeta nas costas, algo húmido. Um universo vermelho todo ao redor, e dor, por toda parte. Como estar sendo queimado por um fogo interior, como se cada partícula do corpo estivesse berrando. A mão foi percebida pelo ser, em algum lugar. Moveu lentamente os dedos e sentiu que se animavam com ameno calor. Abriu os olhos, devagar. O vermelho foi substituído por uma ofuscante brancura. Foi como recuperar todos os sentidos de uma só vez, como ver-se entregue a um único caos ensurdecedor. Um zunido insistente, por toda parte, um barulho estrídulo, descontínuo e cacarejante, e depois cheiro de terra e de erva, e a percepção húmida do orvalho nas costas. O ser rendeu-se ao espanto. Pestanejou algumas vezes e então, com um movimento vigoroso, conseguiu virar-se de lado. Cada músculo do seu corpo gemeu, deixando-o sem fôlego. Pouco a pouco, na brancura, foi-se desenhando a forma de um braço pálido, apoiado na erva, e duas pernas magras, cândidas e delgadas, apenas encobertas por uma túnica manchada. Onde estou? A pergunta surgiu na sua consciência, simples e terrível. Não conseguiu encontrar uma resposta. Olhou a mão iluminada pelos raios do sol. As cores iam vagarosamente se definindo. O rosa pálido da pele, o verde ofuscante da relva, os ambíguos tons da roupa que vestia. Quem sou? Nenhuma resposta. Um aperto gelado envolveu suas têmporas. Passou a mão no peito, onde o coração marcava o tempo da sua ansiedade. Peitos, pequenos e empinados. Sou uma mulher. A consciência disto não aliviou minimamente os seus temores. Olhou em volta. O céu era de um azul profundo, sem sombra de nuvens. O relvado que a cercava pareceu-lhe infinito; pontilhando a erva, as pequenas manchas brancas de tímidas margaridas e o puro vermelho das papoilas. Ninguém à vista. Tentou sondar as lembranças, trazer de volta à memória algum nome, um rosto, qualquer indício que a ajudasse a entender. Nada». In Licia Troisi, O Destino de Adhara, Lendas do Mundo Emerso, Editora Rocco, 2008, ISBN 978-858-122-046-8.


Cortesia de ERocco/JDACT