sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Nas Asas do Tempo. Diana Gabaldon. «Ouvi perfeitamente o empregado daquele pub ontem à noite referir-se a nós como “sassenachs”. Bem, porque não?, retorquiu Frank tranquilamente. Afinal, significa apenas ‘ingleses’»

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«(…) Que rapariga sem consideração. Eu vim cá para descansar, lembras-te? Preguiçoso. Nunca vais conseguir colocar o próximo ramo familiar na tua árvore genealógica se não mostrares um pouco mais de empenho. A paixão de Frank por genealogia era outra razão para termos escolhido as Terras Altas. Segundo um dos encardidos pedaços de papel que ele transportava de um lado para o outro, um antepassado seu tivera alguma coisa a ver com os acontecimentos naquela região em meados do século XVIII, ou seria século XVII? Se eu acabar como um tronco sem descendentes na minha árvore genealógica, sem dúvida será por culpa da nossa incansável anfitriã lá fora. Afinal, estamos casados há quase oito anos. O pequeno Frank Jr. será perfeitamente legítimo sem precisar de ser concebido na presença de uma testemunha. Se vier a ser concebido, disse eu, pessimista. Ficáramos decepcionados mais uma vez na semana anterior à partida para nosso retiro nas Terras Altas. Com todo este revigorante ar puro e esta comida saudável? Como poderíamos falhar aqui? O jantar na noite anterior fora arenque, frito. O almoço fora arenque, em conserva. E o cheiro penetrante que agora subia pelo vão da escada sugeria com elevado grau de certeza que o pequeno-almoço deveria ser arenque fumado. A menos que estejas a pensar em mais uma edificante performance para a senhora Baird, sugeri, é melhor vestires-te. Não vais encontrar-te com aquele pastor às dez? O reverendo Reginald Wakefield. o vigário da paróquia local, iria fornecer algumas fascinantes certidões de baptismo para inspecção de Frank, já para não falar na esfuziante perspectiva de que pudesse ter desenterrado alguns despachos bolorentos do exército ou algo parecido que mencionassem o famoso antepassado. Como se chama afinal aquele avô do teu tetravô?, perguntei. Aquele que andou a fazer disparates por aqui durante uma das rebeliões? Não consigo lembrar-me se era Willy ou Walter. Na verdade, era Jonathan.
Frank aceitava placidamente o meu total desinteresse pela sua história familiar, mas permanecia sempre alerta, pronto para aproveitar a menor expressão de curiosidade como desculpa para me contar todos os factos conhecidos até à presente data sobre os antigos Randall e as suas ligações. Os seus olhos assumiram o brilho febril do professor fanático enquanto abotoava a camisa. Jonathan Wolverton Randall. Wolverton pelo tio da mãe, um cavaleiro insignificante de Sussex. Era, no entanto, conhecido pela alcunha um tanto arrojada de Black Jack que adquiriu no exército, provavelmente durante a época em que esteve aqui colocado. Deixei-me cair na cama com o rosto enfiado na almofada. fingindo ressonar. Ignorando-me, Frank continuou com a sua exegese erudita. Ele recebeu a patente de oficial em meados dos anos trinta, isto é, em meados de mil setecentos e trinta, e foi capitão dos dragões. Segundo aquelas cartas antigas que a prima May me enviou, ele saiu-se muito bem no exército. Uma boa escolha para um segundo filho, como sabes; o irmão mais novo também seguiu a tradição tornando-se cura, mas ainda não encontrei muita coisa sobre ele. De qualquer modo, Jack Randall foi altamente elogiado pelo duque de Sandringham pelas suas actividades antes e durante a Conspiração Jacobita de mil setecentos e quarenta e cinco, a segunda, como sabes especificou, em proveito dos ignorantes na plateia, isto é, eu. Com o Bonnie Prince Charlie (Charles Edward Stuart, pretendente ao trono de Inglaterra, Escócia e Irlanda) e toda aquela gente.
Não sei bem se os escoceses acham que perderam essa, interrompi, sentando-me e tentando domesticar o cabelo. Ouvi perfeitamente o empregado daquele pub ontem à noite referir-se a nós como sassenachs. Bem, porque não?, retorquiu Frank tranquilamente. Afinal, significa apenas ingleses ou, na pior das hipóteses, forasteiros, e nós somos tudo isso. Sei o que significa. Foi o tom com que ele falou que me incomodou. Frank procurou um cinto na gaveta da cómoda. Ele só estava zangado porque eu disse que a cerveja era aguada. Disse-lhe que a verdadeira cerveja das Terras Altas exige que uma bota velha seja acrescentada ao tonel e que o produto final seja coado através de umas cuecas usadas. Ah, isso explica o total da conta. Bem, eu disse-o com um pouco mais de tacto, mas só porque a língua gaélica não possui uma palavra específica para cuecas. Peguei nas minhas próprias cuecas, intrigada. Porque não? Os antigos celtas da Escócia não usavam roupa interior? Frank lançou-me um olhar malicioso. Nunca ouviste aquela velha canção sobre o que os escoceses usam por baixo do hilt? Provavelmente não aqueles elegantes calções até aos joelhos, observei secamente. Enquanto estiveres a brincar com vigários, talvez eu vá à procura de um nativo de hilt e lhe pergunte. Bem, tenta não seres presa, Claire. O reitor do Saint Giles College não iria gostar nada». In Diana Gabaldon, Nas Asas do Tempo, 1991, Casa das Letras, LeYa, 2010, 2016, ISBN 978-972-461-974-3.

Cortesia das CdasLetras/JDACT