terça-feira, 30 de agosto de 2016

Casanova. Ian Kelly. «Desde a estreia da ópera, algumas transformações tinham sido feitas no teatro. Quando Casanova atravessou a plateia, seguindo por trás das poltronas do Nostitz, abriu-se diante dele uma visão…»

jdact e wikipedia

«No primeiro minuto do meu sonho, tenho visões de corpos dançando, cujas formas me são perfeitamente familiares, iluminados por um estonteante conjunto de luzes». In 1791, Casanova

«Doze de Setembro de 1791. Engarrafamento em duas ruas de Praga. Os cavalos se mostram nervosos com os clarões e os fogos de artifício. A comida, transportada em carretas do mosteiro de Prikopy para o baile da coroação, é escoltada por soldados diante da multidão faminta. Um veneziano de 66 anos caminha com passos firmes da carruagem de seu patrão até às luzes do pórtico do teatro Nostitz. Apenas alguns dias antes, ele assistira ali à estreia da nova obra de Mozart, composta em homenagem ao recém-coroado imperador. Porém La Clemenza di Tito não agradou a Giacomo Casanova, e muito menos ao grupo real a quem a obra fora dedicada: a jovem imperatriz zombou dela, declarando que Herr Mozart tinha composto uma porcheria tedescha, uma ópera pior do que uma salsicha alemã ordinária. Casanova preferia Don Giovanni. Ele havia colaborado no libreto e assistido à première naquele mesmo teatro. Se assisti?, teria respondido ele a seu velho amigo Da Ponte, o libretista veneziano. Praticamente vivi tudo aquilo.
Desde a estreia da ópera, algumas transformações tinham sido feitas no teatro. Quando Casanova atravessou a plateia, seguindo por trás das poltronas do Nostitz, abriu-se diante dele uma visão que lhe chegava directamente de sua infância em Veneza. Para além da boca de cena, onde apenas uma semana antes existia um palco, depois das cortinas suspensas, onde a lista das conquistas de dom Giovanni foi apresentada pela primeira vez, via-se um cenário de pano: um pátio de seis metros de comprimento montado para o baile de coroação daquela noite. Ele se prolongava para trás, para além do poço da orquestra, da plataforma de cargas e mesmo da parede dos fundos do palco, demolida pelo imperial professor de engenharia de Praga, a fim de que o salão em forma de galeria pudesse se esticar para fora do ponto de fuga da perspectiva do palco, como se chegasse ao infinito. Forrado por oito mil varas de linho vermelho da Boémia, o salão-palco ficou lotado com a corte inteira dos Habsburgo, que dançava com a música da orquestra imperial de Antonio Salieri, comprimida nos camarotes do teatro. A cena era reflectida por uma dupla falange de espelhos venezianos. Os cortinados, os fios de ouro, os candelabros e o falso mármore, as cornijas e os céus em trompe l’oeil: todo um mundo por apenas uma noite, além da arte ou da razão, formado de gesso e tecidos, desaparecia pelo proscénio. Aquela noite de 1791 no Nostitz marcou o final de uma era. A França fora tomada pela revolução, e sua rainha, a irmã do novo imperador, foi presa. Para muitos daqueles seis mil aristocratas no palco do Nostitz, sob os céus pintados de Giovanni Tartini, aquela seria a dança derradeira no mundo que eles conheciam: sua última performance no Carnaval de Veneza, o último de tantos bailes de máscaras.
Quando criança, Casanova tinha assistido a espectáculos semelhantes. Todos os anos em Veneza, na Festa da Ascensão, quando o doge realizava o ritual das núpcias da República de Veneza com o mar, e a cidade inteira se entregava ao Carnaval, os venezianos esperavam desfrutar seus teatri del mundo. Havia dois tipos. Um era um palco flutuante, que pertencia à República. Este ficava atracado diante da piazzeta São Marcos e era usado para espectáculos patrocinados pelo Estado, encenações mirabolantes de contos míticos e fábulas celestiais nas quais se destacavam aristocratas trajados de maneira esplendorosa e fogos de artifício. Além disso, havia também, na praça São Marcos, situada nas proximidades, pequenos espectáculos de lanterna mágica encenados nas ruas: lampejos da escuridão para um mundo ao mesmo tempo sublime e ridículo, iluminações de rinocerontes, monstros, imagens americanas e amorosas, recriadas à luz de caixas com lanternas para um admirável mundo novo de consumidores voyeuristas. Por esse motivo, esses pequenos teatro del mundo também eram conhecidos como mondi nuovi: novos mundos. A julgar pelas anotações de Casanova sobre seus sonhos, descobertas no arquivo de Praga, que agora abriga suas notas um tanto esparsas (uma descoberta incalculavelmente excitante para o biógrafo), sua mente se voltou para esses teatri a partir daquela noite de 1791, quando ele passou a sonhar com o Nostitz em visões surrealistas de seres humanos que dançavam nus, olhos e narizes, órgãos genitais de ambos os sexos e outras partes do corpo cujas formas me são tão familiares. O grande cronista do século foi testemunha daquele último baile: a corte dos Habsburgo criando o seu próprio teatro del mundo sob a forma de corpos humanos cabriolando atordoados sob as luzes do teatro, reflectidos nos espelhos, dançando em meio aos cenários.
De Praga, Casanova retornou à sua escrivaninha, na biblioteca onde trabalhava, num castelo frio da Boémia. Seus sonhos estavam cheios de recordações perturbadas, porém ele passava os dias se dedicando a uma narrativa mais bem estruturada, a qual jamais veria publicada: o registo de pessoas, lugares, odores, sabores, do sexo e da sensibilidade do século anterior à revolução. O século XVIII de Casanova fora em muitos sentidos um teatro del mundo: um mundo escravizado pelo teatro. Moldada e espelhada em suas luzes e na sua literatura, deliciando-se nos artifícios do teatro, a vida dele, segundo suas anotações de sonhos e memórias, estruturou-se por essa ideia de desempenho, uma vez que ele foi formado pelas perspectivas mutáveis e reflexivas de Veneza e de sua commedia dell’arte.
Nascido em Veneza, então uma capital do teatro, oriundo de uma família de actores, ele viajou a vida inteira por toda a Europa, seguindo a antiga tradição dos mascarados venezianos. Mais do que isso, seu sucesso na vida e no amor, como libertino e libertário, foi obtido por sua capacidade de reinventar a si mesmo, de jogar todas as suas cartas em benefício próprio e de viver inteiramente para um presente estonteante. Naquela noite em 1791, é provável que não lhe tenha escapado a ironia, a ele, que era capaz de se sentir vivo apenas por meio das recordações e da escrita, de o mundo parecer compreender mais a fundo as alegrias da vida quando está diante do drama de sua recriação artificial. Sua obra-prima, história da minha vida, dá vida, como nenhum outro documento, ao século em que ele viveu, mas a alegria com que ele construiu sua vida, singularmente própria de um actor, permanece também como testamento para uma nova compreensão do eu. Como qualquer veneziano sabe, existe a máscara, e também a substância por trás dela, e um novo alvorecer revolucionário procurou compreender a personalidade com referência a ambas». In Ian Kelly, Casanova, 2008, Aletheia Editores, colecção nº 1, 2009, ISBN 978-989-622-175-1.

Cortesia de AletheiaE/JDACT