quarta-feira, 3 de agosto de 2016

A Ceia Secreta. Javier Sierra. «Mas, além da solidão, também o dó acabou corroendo minha alma. Lamento que Abdul nunca venha a saber o que me trouxe à sua aldeia. Eu não saberia lhe explicar por sinais»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Não me lembro de enigma mais arrevesado e perigoso do que aquele que me coube resolver naquele Ano-Novo de 1497, enquanto os Estados Pontifícios observavam como o ducado de Ludovico Sforza, o Mouro, estremecia de dor. O mundo era então um lugar hostil, variável, um inferno de areias movediças no qual quinze séculos de cultura e fé ameaçavam desmoronar sob a avalanche de novas ideias importadas do Oriente. Da noite para o dia, a Grécia de Platão, o Egipto de Cleópatra ou as extravagâncias da China explorada por Marco Polo mereciam mais aplausos que nossa própria história bíblica. Aqueles foram dias turbulentos para a cristandade. Tínhamos um papa simoníaco, um diabo espanhol coroado sob o nome de Alexandre VI, que havia comprado com descaro sua tiara no último conclave, uns príncipes subjugados pela beleza do pagão e uma maré de turcos armados até aos dentes à espera de uma boa oportunidade para invadir o Mediterrâneo ocidental e converter todos nós ao islamismo. Poder-se-ia dizer que jamais nossa fé estivera tão indefesa em seus quase 1.500 anos de história. E ali estava este servo de Deus que vos escreve. Assimilando um século de mudanças, uma época na qual o mundo estendia diariamente suas fronteiras e exigia de nós um esforço de adaptação sem precedentes. Era como se, a cada dia que passava, a Terra se tornasse cada vez maior, forçando-nos a uma atualização permanente de nossos conhecimentos geográficos. Nós, clérigos, já intuíamos que não íamos dar conta de pregar para um mundo povoado por milhões de almas que jamais haviam ouvido falar de Cristo, e os mais cépticos vaticinavam um período de caos iminente, que seria trazido à Europa pela chegada de uma nova horda de pagãos.
Apesar de tudo, foram anos excitantes. Anos que contemplo com certa saudade na velhice, neste exílio que devora pouco a pouco minha saúde e minhas lembranças. Minhas mãos já quase não me respondem, minha vista fraqueja, o sol cegante do sul do Egipto turva minha mente e só nas horas que precedem o alvorecer sou capaz de ordenar meus pensamentos e reflectir sobre o tipo de destino que me trouxe até aqui. Um destino que nem Platão, nem Alexandre VI, nem os pagãos desconhecem. Mas, não vou antecipar os acontecimentos. Basta dizer que agora, por fim, estou sozinho. Dos secretários que um dia tive não resta mais nenhum, e hoje só Abdul, um jovem que não fala meu idioma e que me julga um santarrão excêntrico que veio morrer em sua terra, atende a minhas necessidades mais elementares. Vivo isolado neste antigo túmulo escavado na rocha, cercado de pó e areia, ameaçado pelos escorpiões e quase inválido das duas pernas. Todos os dias o fiel Abdul traz até este cubículo um pão ázimo e o que sobra em sua casa. Ele é como o corvo que durante sessenta anos levou em seu bico meia onça de pão para Paulo, o Eremita, que morreu com mais de 100 anos nestas mesmas terras. Abdul, diferente daquele pássaro de bom augúrio, sorri quando me entrega a comida, sem saber muito bem que mais fazer. É suficiente. Para alguém que pecou tanto como eu, toda contemplação se transforma em um prémio inesperado do Criador. Mas, além da solidão, também o dó acabou corroendo minha alma. Lamento que Abdul nunca venha a saber o que me trouxe à sua aldeia. Eu não saberia lhe explicar por sinais. Também ele jamais poderá ler estas linhas, e, ainda no remoto caso de que as encontre após minha morte e as venda para algum cameleiro, duvido que sirvam para algo mais que atiçar uma fogueira nas frias noites do deserto. Ninguém aqui entende latim nem língua românica alguma. E cada vez que Abdul me encontra diante destas páginas dá de ombros, atónito, sabendo que está perdendo algo importante. Essa ideia me tortura dia a dia. A certeza íntima de que nenhum cristão jamais chegará a ler estas páginas ataranta minha lucidez e enche meus olhos de lágrimas. Quando acabar de redigi-las, pedirei que as enterrem junto com meus despojos, esperando que o anjo da morte se lembre de recolhê-las e levá-las perante o Pai Eterno quando se celebrar o julgamento de minha alma. Triste é a história: os maiores segredos são os que nunca vêm à luz. Conseguirá o meu? Duvido.
Aqui, nas grutas que chamam de Yabal al-Tarif, a poucos passos deste grande Nilo que abençoa com suas águas um deserto inóspito e vazio, só rogo a Deus que me dê tempo suficiente para justificar por escrito meus actos. Estou tão longe dos privilégios que um dia tive em Roma que, mesmo que o novo papa me perdoasse, sei que já não seria capaz de voltar ao rebanho de Deus. Eu não suportaria deixar de escutar os distantes lamentos dos muezins em seus minaretes, e a saudade desta terra que me acolheu com tanta generosidade torturaria meus últimos dias. Meu consolo é ordenar aqueles acontecimentos tal como ocorreram. Alguns eu vivi em minha carne. De outros, porém, tive notícia muito tempo depois de ocorridos. Contudo, colocados um após o outro, vos darão uma ideia da magnitude do enigma que alterou minha existência. Não. Não posso mais dar as costas ao destino. E, agora que reflecti sobre tudo o que meus olhos viram, vejo-me na obrigação de contar…, ainda que não sirva a ninguém». In Javier Sierra, A Ceia Secreta, 2013, Editora Planeta, 2014, ISBN 978-854-220-327-1.

Cortesia de EPlaneta/JDACT