quarta-feira, 24 de agosto de 2016

1Q84. Haruki Murakami. «Muito obrigado. A propósito..., indagou o motorista, virando um pouco a cabeça para o lado em que ela estava: está com pressa? Tenho um compromisso em Shibuya. Foi por isso que pedi para o senhor…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Eis o mundo do espectáculo em que tudo é fantasia; mas, se você acreditar em mim, real ele se tornará»

Não se deixe enganar pelas aparências (Aomame)
«(…) Aomame concordou e, novamente, se recostou no assento. O jeito de o motorista falar a incomodava. Era como se ele sempre deixasse algo muito importante por dizer. Por exemplo (e esse é apenas um exemplo), era como se ele dissesse que não tinha nenhuma reclamação quanto ao isolamento acústico dos carros da Toyota, mas deixava implícito que outros requesitos ainda tinham algo a ser melhorado. Quando ele falava, pairava no ar uma pequenina, mas significativa massa de silêncio. Massa silenciosa a flutuar como uma minúscula nuvem imaginária no interior do carro. E isso a deixava incomodada. Realmente. É silencioso, disse Aomame, como que para afugentar essa pequenina nuvem. O aparelho de som parece ser de óptima qualidade! Tive de criar coragem na hora de comprá-lo, disse o motorista. Ele falava como um oficial aposentado do Estado-Maior comentando sobre as estratégias de guerra do passado. Como passo muitas horas dentro do carro, quero ouvir um bom som e... Aomame aguardou a continuação da conversa. Mas a espera foi em vão. Ela novamente fechou os olhos para apreciar a música. Aomame não tinha nenhuma ideia de como teria sido Janáček pessoalmente, mas de uma coisa ela sabia: ele nunca imaginou que em 1984 alguém escutaria sua música em Tóquio, dentro de um silencioso Toyota Crown Royal Saloon, em plena via expressa totalmente congestionada. Mas o mais incrível era o facto de Aomame saber prontamente que a música era a Sinfonietta de Janáček, e que havia sido composta em 1926. Ela nunca fora muito fã de música clássica e, tampouco, tinha alguma lembrança pessoal relacionada a Janáček. Mesmo assim, bastou ouvir os acordes iniciais para que inúmeros conhecimentos surgissem espontaneamente. Era como uma revoada de pássaros a adentrar pela janela aberta de um quarto. A música também provocava em Aomame uma estranha sensação, como se estivesse sendo retorcida. Sem dor, sem sofrimento. Uma sensação única, como se seu corpo estivesse sendo espremido lenta e firmemente. Aomame não sabia o que estava acontecendo. Será que a Sinfonietta é que provocava essa sensação estranha? Janáček, disse Aomame, espontaneamente. E logo se arrependeu de tê-lo dito. O que disse? Janáček. Foi quem compôs essa música. Nunca ouvi falar. É um compositor checo, disse Aomame. Ah é?, exclamou o motorista, parecendo admirado. O táxi é seu?, perguntou Aomame para mudar de assunto. É sim, respondeu o motorista e, um tempo depois, comentou: sou autónomo e este é o meu segundo carro. É muito confortável!
Muito obrigado. A propósito..., indagou o motorista, virando um pouco a cabeça para o lado em que ela estava: está com pressa? Tenho um compromisso em Shibuya. Foi por isso que pedi para o senhor pegar a via expressa. A que horas é o encontro? Quatro e meia, respondeu Aomame. Agora são três e quarenta e cinco. Creio que não chegaremos a tempo. O congestionamento está tão ruim assim? Parece que houve um acidente grave lá na frente. Esse congestionamento não é normal. Já faz um bom tempo que estamos aqui, praticamente sem sair do lugar. Aomame achou estranho o motorista ainda não ter procurado se informar sobre o trânsito pelo rádio. Normalmente, quando ocorre algum congestionamento que trava a via expressa, os taxistas costumam sintonizar a rádio numa frequência especial para obterem informações sobre o ocorrido. Dá para saber, mesmo sem ouvir as informações do trânsito?, perguntou Aomame.
Não se pode confiar nessas informações, respondeu o motorista, num tom de voz imparcial. Metade do que dizem é mentira. As concessionárias que administram essas rodovias públicas só informam o que lhes convêm. O único jeito de saber o que realmente está acontecendo é ver com os próprios olhos e tirar suas conclusões. Então, pelas suas conclusões, este congestionamento não vai melhorar tão cedo. Tão cedo, acho difícil, disse o motorista, maneando calmamente a cabeça, de modo afirmativo. Isso eu posso garantir. A via expressa, quando está desse jeito, fica um inferno. E..., esse seu compromisso é muito importante? Aomame pensou um pouco antes de responder: É. E muito. Vou me encontrar com um cliente. Sinto muito, mas acho que você não vai conseguir chegar a tempo. Dito isso, o motorista movimentou lentamente a cabeça como que para relaxar a rigidez dos músculos. As rugas detrás do pescoço mexiam como se fossem seres pré-históricos. Enquanto Aomame observava as rugas em movimento, de súbito, lembrou-se de que, no fundo de sua bolsa, havia um objecto extremamente pontiagudo. As palmas de suas mãos começaram a transpirar. Se é assim, o que o senhor acha que devo fazer? Não há o que fazer. Estamos numa via expressa e, até chegarmos à próxima saída, não tem jeito. Se estivéssemos numa via comum, bastaria descer do carro e pegar o comboio na estação mais próxima». In Haruki Murakami, 1Q84, 2009, Alfaguara, Editora Objectiva, 2012, ISBN 978-857-962-187-1.

Cortesia de EObjectiva/Alfaguara/JDACT