sábado, 27 de novembro de 2010

Oliveira Martins: Os Filhos de D. João I. Parte II, ... Daqui resultou a cruel tragédia de Fernando Affonso, amante de uma dama da corte, e dos validos mais queridos de D. João I, que às escondidas lhe recommendou juizo. Mas fê-lo, provavelmente, como estas coisas se passam entre amigos: rindo

Cortesia de pnsintraimc-ip

Com a devida vénia a Paulo Campos.
Os Filhos de D. João I de Joaquim Pedro Oliveira Martins, 3 1761 042963371, Casa Editora, ANTIGA LIVRARIA CHARDRON, Lugan & Genelioux, Successores, Porto. Lisboa, Imprensa Nacional, MDCCCXCI, Library University of Toronto, Oct 6 1967

Cortesia de Paulo Campos

A CORTE E O CONSELHO (continuação)
«Foi o seu último filho. D. Filippa acabou por gerar um santo, ela em cujo ventre se formara a semente de tão grandes homens. Quinze annos (1387 a 1402) de um procrear incessante: abençoadas entranhas! E durante este período, no vigor da vida, entre os trinta e os quarenta e cinco, o rei não teve um bastardo. Que singular mudança houvera nos costumes da corte: dessa corte que vinte anos antes aclamára Leonor Telles?

Diz-nos D. Duarte que o rei e a rainha fizeram casar mais de um cento de mulheres, entrando na conta as que ele próprio casou também, seguindo tão bons exemplos. Não havia uma ligação ilícita, nem um adultério conhecido. A corte era uma escola. D. Filippa, pregando ao peito o seu véu de esposa casta, com os olhos levantados ao céu, não perdoava. Terrível, na sua mansidão, trazia o marido sobre espinhos. De uma vez, segundo reza a lenda, em Sintra, o rei esqueceu-se, e furtivamente pregava um beijo na nuca, ou na face, de uma das aias, quando surgiu logo, acusadora e grave, sem uma palavra, mas com um ar medonho, a rainha
casta e loura. D. João, enfiado, titubeando, disse-lhe uma tolice: «Foi por bem!» Ela, partiu solenemente. Eram ciúmes? Não; só tem ciúmes quem tem paixão. Era aquele sentimento exclusivamente saxónio, para o qual também só há palavra na língua inglesa: era o cant, essa mistura inconsciente de orgulho e convenção que, ficando abaixo da religião do dever, está muito por cima da hipocrisia, isto é, da simulação consciente dele.

Cortesia de almapaixonada

Não há sentimentos mais despóticos e absorventes do que estes sentimentos quasi artificiais, em que a ingenuidade aparece enleiada pela convenção. A rainha não perdoava; mas que diferença, entre a sua intolerância hirta, e a virtude humana e espontânea, a virtude quente e alegre do condestável! O rei passara das mãos dele para as da esposa, que fazia empalidecer esse valente quando o fitava com os seus olhos azuis impassíveis. Por fortuna, a rainha era tão virtuosa e boa, quanto sincera.
No propósito firme de lhe obedecer, D. João, porém, excedia os limites da humanidade. Com a lembrança da casa em que nascera presente sempre, a rainha exigira o casamento imediato de toda a corte. Nem requebros, nem amores, nada! o casamento cru e direito, como ordena a santa madre igreja. Combinavam os enlaces, qual devia convir para fulana, ou vice-versa, de forma que um dia um, outro dia outro, recebia a ordem terminante concebida nestes termos: «Manda-vos el-rei dizer que vos façaes prestes para desposar de manhã». —Quem? — «Não importa; lá o sabereis». E assim se casou toda a corte, sendo este um exemplo para convencer os românticos do que a disciplina pode sobre os homens; pois a geração desse tempo, que por tais processos deveria produzir o cúmulo da desordem, foi um perfeito modelo de força e virtude.
E ai daquelle que, por folia ou por paixão, não tomava a sério as regras prescritas. O cant é descaroável, e ao serviço da preocupação da rainha punha o rei o seu temperamento violento de homem de guerra. Daqui resultou a cruel tragédia de Fernando Affonso, amante de uma dama da corte, e dos validos mais queridos de D. João I, que às escondidas lhe recommendou juizo. Mas fê-lo, provavelmente, como estas coisas se passam entre amigos: rindo. Ele, pelo menos, não tomou o caso a sério, e, simulando uma viagem a Santa Maria de Guadalupe, devoção muito em moda no tempo, meteu-se na alcova da aia para rezar. O rei, que o soube, talvez ainda risse, mas demitiu-o. O rapaz aceitou a demissão, para o quarto da dona onde se foi aninhar, e onde el-rei o mandou prender. Começava a ser grave. No caminho da prisão, Fernando Affonso, á cautela, fugiu para Santo Eloy. Na corte ia um borborinho enorme com o caso, que a rainha devia considerar uma abominação. Foi ela que obrigou o marido a sair? Não se sabe; mas o facto é que D. João I largou do paço (de apar S. Martinho, junto ao Limoeiro) numa fúria. Deixara em meio a sesta, e saiu mal vestido, coberto com um mantéu, em ceroulas, correndo a pé para a igreja onde o desgraçado se asilara, subindo ao altar e abraçando-se à imagem da Virgem. Pois aí mesmo o mandou o rei prender, sem atenção ao direito sagrado de asilo, que era uma das válvulas de segurança inventadas pela crença ingénua para moderar as explosões da violência dos tempos. Para o prenderem, os homens do rei tiveram de despedaçar a Virgem, que veio do altar abaixo com ele. Adúltero, ficava sacrílego.
No dia seguinte, logo, sem processo, o rei mandou queimar vivo o desgraçado no Rossio.

Cortesia de forumpatria

Hoje, o cant não dá lugar a tragédias desta ordem. Os costumes são outros, outros os nervos; mas o cant é, como sempre foi, o despotismo mais desapiedado, o mais absorvente e o mais tirano. D. João I obedeceu-lhe tanto, que se transformou; acabando por dar o tom e ser o tipo que serviu de grave exemplo a seus filhos. Devoto, empregava os ócios na tradução das Horas Marianas; literato, escrevia o livro da Monteria: por isso os filhos todos, mais ou menos, mas principalmente D. Duarte e D. Pedro, se criaram com a devoção das letras e em particular das letras místicas. Lançada esta semente no torrão fecundo da alma nacional, entusiasticamente afirmativa, desabrochou, três ou quatro gerações depois, nessa poderosa vegetação do fervor católico, delirante na época de D. João III.
Agora, na alvorada dos dias de fogo e sangue, a luz aparecia difusamente suave; o mundo apresentava-se como uma doce e atraente harmonia; e as paixões transcendentes, ainda em botão, serviam apenas para corroborar, com a sua autoridade superior, os preceitos da vida prática. Encarada a essa luz, a existência propunha-se como um dever sagrado, e o reinar como um ofício duro. D. João I, conta seu filho, sentindo os cargos do rei, em uma roupa fez bordar um camelo, por ser besta de maior carga, com quatro sacos, em que eram postos sobre cada um estas letras:
  • no primeiro, temor de mal reger;
  • no segundo, justiça com amor e temperança;
  • no terceiro, contentar corações desvairados;
  • no quarto, acabar grandes feitos com pouca riqueza.
Estavam em moda as divisas e motos simbólicos. Nestas quatro expressões sintéticas se resumiam com efeito as ideias públicas do tempo. Via-se o génio do bastardo de D. Pedro I, herdando do pai o instinto da economia: obter grandes resultados com pequeno gasto; via-se o desejo de ser bom e amorável, tomando a realeza como um patriarcado, qual fora também o do rei justiceiro; via-se, porém, finalmente, um sentimento que é novo: o medo de mal reger, o escrúpulo, o receio de errar, que faz do ofício dos reis um peso capaz de carregar um camelo.

Cortesia de tugasco

Este aparecimento do escrúpulo, exprimindo a noção do dever, traduz a nova face transcendente que a vida adquiria. Viver é uma coisa séria; reinar, a mais séria das ocupações. O rei começa a sentir-se o órgão da nação e a chave da abóbada do estado, que surge como uma construção ideal, ou por outra, uma obra de arte. Foram-se os tempos ingénuos do instinto bárbaro, que fazia dos príncipes instrumentos cegos da valentia e da cobiça próprias, governando os povos como rebanhos. Foi-se também o fetichismo antigo, que prostrava os reis de rastos diante da cleresia, trementes com medo do inferno. A filosofia entra na corte: uma filosofia moralmente infantil, misturada com superstições astrológicas; mas filosofia em todo o caso, isto é, amor do saber e obediência aos ditames da reflexão. Foram-se os tempos antigos, e estão distantes ainda as idades vindouras, em que a amarga lição das coisas ensinará o cepticismo, e em que o duro ofício de reinar parecerá o ócio cómodo que Deus dá aos príncipes para seu regalo.
A moda das divisas e motos, introduzida, com outros inglesismos, pelo casamento de D. João I: moda feudal que nos chegou em francês por serem normandos que a tinham levado com o feudalismo para Inglaterra: essa moda importa pouco em si, mas significa muito, porque as divisas da família de Aviz exprimem todas a nova ordem de ideias que a corte respirava e de que vivia. Facto é, porém, que o formalismo ritual da cavalaria veio dar corpo, e portanto consciência e consistência, aos sentimentos de galhardia e lealdade portuguesas, expressos em numerosas lendas históricas, e encarnados no vulto épico do condestável, que
não era menos nobre, nem menos bravo, do que foram depois os homens educados pela leitura dos Amadis. O mestre de Aviz, todavia, primeiro rei estrangeiro que entrou na «santa confraria da Garrotea», abriu um lugar à fidalguia nacional nas legiões da cavalaria europeia». In Os Filhos de D. João I de Joaquim Pedro Oliveira Martins, 3 1761 042963371, Casa Editora, ANTIGA LIVRARIA CHARDRON, Lugan & Genelioux, Successores, Porto. Lisboa, Imprensa Nacional, MDCCCXCI, Library University of Toronto, Oct 6 1967.

Cortesia de feriasparatodos

Cortesia de J P Oliveira Martins/Paulo Campos/Universidade de Toronto/JDACT