segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Oliveira Martins: Os Filhos de D. João I. Parte I, D. João I ignorava o que havia para além da face de mulher, serena e fria, sem outra beleza do que o doirado dos seus cabelos, cor de trigo em Junho, a alvura da sua pele, rosada nos lábios finos e o azul (falso ou verdadeiro?) dos seus pequenos olhos


Cortesia de Paulo Campos
Com a devida vénia a Paulo Campos
Os Filhos de D. João I de Joaquim Pedro Oliveira Martins, 3 1761 042963371, Casa Editora, ANTIGA LIVRARIA CHARDRON, Lugan & Genelioux, Successores, Porto. Lisboa, Imprensa Nacional, MDCCCXCI, Library University of Toronto, Oct 6 1967


Cortesia de wikipédia

A CORTE E O CONSELHO
«Em 1411, Castela, cinco anos depois da morte de Henrique III, assinará o tratado de paz connosco pela mão da rainha viúva, que sempre fora contra a guerra (1). A dinastia, filha da revolução de 1383, ficava reconhecida. O período de crise aguda pôde, porém, dizer-se que acabara logo em 1387, quando, aos trinta anos, D. João I desposou D. Filipa de Lencastre, que tinha vinte e nove.

(1) Os capítulos gerais de pazes e aliança com Castela, celebradas entre D. João II, por um lado, e, pelo outro, D. João I de Portugal e seus filhos, ratificaram-se em 1431, a 30 de Outubro, em Medina dei Campo. Ver o texto do tratado, em Soares da Silva, Memórias de el-rei D. João I; doc. n. 36; tom. IV, p. 270-358. Logo em 1387, dois anos depois de Aljubarrota, os duques de Lencastre, como reis de Castela, desistiam, pelo tratado de Babe, termo de Bragança, de quaisquer direitos à coroa portuguesa em favor de D. João I. Ibid. doc. N. 11; tom. IV, p. 67-71.

Foram quatro anos de luta incessante. Depois, a hostilidade prolongou-se, mas num estado crónico e manso, como sucedia geralmente às guerras europeias antes do fim do século XVIII.
Também o casamento do rei trouxe consigo uma alteração completa no carácter e nos costumes da corte portuguesa. É sabido que essa aliança procedeu da liga politica celebrada, contra Castela, entre o mestre de Avis e o duque de Alencastro (como diziam os portugueses de então), pretendente á coroa castelhana. O duque saiu de Prymouth numa grande armada que veio à Corunha e de lá ao Porto.

Entrada de D. João I
Estação de S. Bento, Porto
Cortesia de CMPorto
Trazia consigo a corte e um exército com que invadiu a Galiza, indo o mestre de Avis avistar-se com ele nas margens do Minho. Anos antes desta vinda do duque de Lencastre a reivindicar a coroa de Castela, o defensor do reino recrutara em Inglaterra as levas de soldados que o tinham ajudado a vencer Aljubarrota, companhias de aventureiros que nesses tempos de agitação violenta andavam por terra às presas. Portugal, em grande parte devedor da sua independência ao auxilio dos Cruzados, procurara, na crise inicial da sua gloriosa dinastia de Avis, o socorro de mercenários ingleses, Cobham, Cressyngham, Blithe, Grantam, Dale e outros, assoldadados por príncipes que já não iam resgatar o sepulcro santo, mas sim conquistar tronos em que regaladamente pudessem gozar as delícias da vida. Saía-se gradualmente do iluminismo medieval. Dissipava-se a penumbra em que os espíritos, vergando sob o medo da morte, procuravam na dissipação da vida violenta esquecer os terrores do juízo final, alternando a impetuosidade do temperamento com a submissão aqueles que tinham o mandato de Deus na terra.

Cortesia de tudoparaportugues

Cortesia de wikipédia
Ingleses nos ajudaram no dia triunfante de Aljubarrota; e a sua táctica, vitoriosa em Azincourt, dera já em 1385 a vitoria ao mestre de Avis, desmantelando a cavalaria castelhana, e sagrando-o rei. Conquistara a coroa: podia celebrar alianças. Pela inglesa que de então continuou até hoje, com mais ou menos contestado proveito, o duque de Lencastre obtinha do rei de Portugal direito de passagem e auxílios de gente para a sua empresa castelhana, desistindo das pretensões sobre as terras lusitanas que andavam incluídas para os nossos inimigos na categoria de rebeldes (2).

(2) Ver a acta da doação em Sousa, Hist. geneal.; Provas, n. 3 da m p., tom. i, 354.—Sylva (Mem. de el-rei D. João I, tom. IV) publica, extraídos do arch. nac, o tratado de aliança de 1387 com Ricardo II de Inglaterra (n. 32; p. 226-43), o acordo com o mesmo rei para as pazes com Castela (n. 33; p. 243-5), e, finalmente, os tratados com Henrique IV, em 1399 (un. 34-5), p. 246-69, Figanière (Catal, dos mss. port. exist. no mus. britann., p. 57) diz que o texto do tratado de 1387, publicado por Sylva, difere, no preâmbulo e na ractificação, do traslado da bibl. Cottoneana.

A aliança ratificou-se com um enlace conjugal. Desses tratados de 1386 e 1387 veio o casamento do rei D. João com a filha do duque de Lencastre; e do casamento uma idade nova para a corte portuguesa, que durante a primeira dinastia não saíra de um estado semi-bárbaro, oscilando entre a violência da vida guerreira e a carnalidade dos prazeres animais, apenas temperada pelos instintos de ordem que ditavam as leis, pela necessidade do interesse que inspirava a politica: alternando o terror do inferno com o embrutecimento da sensualidade, e acabando numa positiva orgia de impudícicia, tão desbragada que ofendeu a curta castidade dos tempos, fazendo esquecer, pelas aflições da desordem e das guerras, o muito bem que o pobre rei D. Fernando fez á terra sobre que desnorteadamente reinou.

Começava agora um dia novo.

Cortesia de wikipédia
Como a cândida açucena, quando se levanta de um chão negro apaulado, ergueu-se da turba de gente desvairada a figura ingénua de Nunalvares, esse exemplo raro de uma encarnação imaculada na virtude forte. Nunalvares foi o precursor da idade doirada em que Portugal ia entrar, e abre-nos com chaves de heroísmo ingénuo as portas do templo da glória histórica.
O mestre de Avis fora em rapaz manhoso, atrevido, audaz sim, mas nunca temerário. A temeridade só é concedida aos que na alma trazem alguma centelha divina. A castidade, essa flor gémea da cavalaria, que namorava o condestável e acabou pelo vencer com o cilicio e a estamenha do seu santo claustro do Carmo, não seduzia o príncipe.
Nas suas cavalarias alentejanas, à volta de alguma monteria aos lobos, ou aos castelhanos, perdeu-se pelos olhos negros da filha de Mendo da Guada, em Veiros. Amou-a, seduziu-a, e trouxe-a para o convento de Santos, em Lisboa. O velho Mendo, de raiva, não cortou mais as barbas, donde lhe puseram por alcunha o Barbadão. «Não havereis já de acabar com essa melancolia?» perguntou-lhe uma vez a rir o mestre, passando em Veiros de cavalgada. «Sim: quando acabar convosco!» E arremeteu numa fúria. Um galão do cavalo salvou o mestre, que partiu cismando. O Barbadão era o riso respeitoso das gentes de Veiros; mas, conformando-se afinal, veio à corte e recebeu as mercês do rei.

Cortesia de veiros
Das travessuras da mocidade trazia, pois, consigo D. João I um filho, duramente amamentado na escola dos acampamentos. A inferioridade relativa imposta pela bastardia, no seio de uma corte que depois timbrou na modéstia até ao exagero, azedou o carácter do conde de Barcelos, acendeu-lhe a cobiça, e, como a todos os bastardos, lançou-lhe na alma a semente de inimizade e despeito: todavia fecunda semente para os homens que ambicionam sobrelevar aos mais, não pela grandeza do próprio espírito, mas pela acção material, isto é, pelo império que exercem sobre os seus semelhantes, dominando-os, ou deslumbrando-os.
O bastardo de D. João I, insaciável, ansioso por vingar com o poder e com a riqueza a inferioridade da sua origem, perante irmãos mais nobres a todos os respeitos, conseguiu penetrar também: subir, voando como falcão, ou insinuar-se, rojando-se como serpente: trepar, até sobre o cadáver do desgraçado de Alfarrobeira, e, ganhando a final, com o ducado de Bragança, um lugar ao lado dos duques de Viseu e de Coimbra, fazer desse posto o degrau que levou também ao trono os seus descendentes.

Tinha dez anos apenas (3) quando seu pai se casou: era uma criança ainda, embora nesses tempos agitados os homens se formassem muito precocemente.

(3) Pormos o nascimento do bastardo de D. João I em 1377, que é uma das duas datas aduzidas. Sousa, na sua Hist. geneal., contesta-a, preferindo 1370, o que parece inadmissível. D. João I nasceu em 1 357, como se vê na própria Hist. geneal., n, 5; e se o conde de Barcelos tivesse nascido em 1370, como se diz no tom. v, 5, seguir-se-ia que o mestre de Aviz teria tido um filho aos treze anos, o que, apesar da precocidade dos homens do tempo, é impossível. Admitindo 1377, o mestre contaria vinte anos ao ter o seu primeiro filho, que, falecendo, como faleceu, em 1461, viveu oitenta e quatro anos. De outro modo teria vivido noventa e um, o que não é impossível, mas seria excepcional

Era uma criança, quando em 1387, no Porto, se celebrava, de um modo até certo ponto avesso, o casamento de D. João I, que parecia não arder em extremos de entusiasmo por essa aliança.
Trazida ao Porto, a princesa aí ficara só, sem o pai e sem o noivo, partidos ambos para a campanha. D. Filipa era já uma mulher feita: tinha vinte e nove anos, um ano menos do que o rei. Era inteligente, suave, loura; era grave e serena, como as inglesas são, embora tenham dentro em si uma de duas coisas, ambas fortes: ou o sentimento arraigado do dever, ou a violência indomável da paixão. Talvez por isso mesmo não seduzisse logo o temperamento expansivo e meridional de D. João I; mas por isso mesmo o dominou com o tempo, transmitindo aos filhos a sua gravidade e a sua virtude saxónias, e produzindo a mais bela espécie de cruzamento.


Cortesia de olharesaeiou
Era possível também que o rei hesitasse em casar-se com a filha de um homem tão desbragado como o duque de Lencastre. Quem lhe assegurava que debaixo da face hierática da princesa, sob o seu gesto ingénuo e grave, se não abrigavam lodos, como os que também se escondem sob o espelho azul, sereno e transparente das lagoas? Fora educada com os piores exemplos. O duque vivia escandalosamente, debaixo das mesmas telhas, com a mulher e com a amante, Catharina Bonet, que tirara ao marido, dando-a por mestra às filhas (3).
(3)«Concupiscentia excaecatus, nec Deos timens, nec homines erubescens, habebat … quandam Karterinam … alienigenam in família cum axore sua.» —Knyghton, De Event. Anglice, 1642.

Formada por tal preceptora, a princesa, com efeito, não devia oferecer garantias, sem embargo do seu ar de santa. Os factos, porém, mostraram que o próprio exemplo da devassidão paterna exercera, como tantas vezes sucede, uma acção salutar no ânimo da filha. Reagiu. Não era uma criança ingénua; era mais e melhor: era uma mulher decidida a ser boa, por isso mesmo que vira e observara de perto a maldade. Esta força de reacção, esta energia moral, que sem dúvida alguma formavam o carácter da rainha, dando-lhe a serenidade da sua face augusta, são o dote inestimável da gente saxónia. Vivem de si, e não, como os meridionais, das impressões externas que recebem. Têm o orgulho ingénito, inacessível à vaidade que nos move. Governam-se pelo pensamento, ou pelo sentimento, sem atenção ao tumulto do mundo que passa. São a gente subjectiva, poetas até á raiz dos cabelos; ao passo que nós, meridionais, artistas incorrigíveis, preferimos viver a vida que corre, alegremente, sem fadigas da alma, á lei da natureza. A vida para eles é uma tarefa, ordenada por um dever: para nós é uma festa, ou um sacrifício. Por isso fazemos pouco dela, e nisto consiste a nossa superioridade, porque muito mais facilmente somos capazes de heroísmo.

Cortesia de portoantigo

Cortesia de comunidadesol
D. João I ignorava, porém, o que haveria para além dessa face de mulher, serena e fria, sem outra beleza mais do que o doirado dos seus cabelos, cor de trigo em Junho, a alvura da sua pele, rosada nos lábios, finos e sem torturas expressivas, e o azul —falso ou verdadeiro?— dos seus pequenos olhos de inglesa. Nenhuma coisa o encantava. Para mulher, não era isso que o desejo lhe pedia; para esposa, receava, lembrando-se das histórias do sogro. O casamento, portanto, fez-se politicamente, por cálculo. Era o último artigo do tratado de aliança que lhe dava força contra Castela. Fez-se com as festas rituais, apressadamente, no intervalo de duas manobras militares.

D. Filipa hospedara-se nos paços do bispo no Porto, dentro do estreito cerco dos muros negros de D. Muninho, levantados remotamente por ocasião da reconquista aos mouros. Esse cinto de altas muralhas encanecidas era uma construção quase ciclópica de enormes quadrados de granito sem cimento, flanqueados por torres maciças, dentados de ameias que no céu pardo recortavam as suas pontas, como espinhos de algum monstro. Encerravam o baluarte dos poderosos bispos do Porto, sempre rivais dos pequenos príncipes portucalenses. Subiam até ao Cimo-de-vlla, descendo em linha recta sobre o Douro por um lado, e pelo outro ladeando a colina desde o antigo castelo suevo da Portaventosa até à Ribeira, onde ficava o postigo dos Banhos. O paço dos bispos, ameiado e torreado, levantava-se no topo da colina com império, sobre a ladeira íngreme de que os socalcos das ruas lôbregas faziam um trono de casaria. Para fora dos muros, a poente, ia-se estendendo o burgo hostil que a rainha D. Teresa doara ao bispo Hugo, legando-lhe uma origem de permanentes contestações e amiudados tumultos.

Cortesia de portotafnet

 
Cortesia de pnsintraimcip 
Lá no fundo, o Douro, apertado entre penedias de granito, corria tristemente, enegrecido pelas matas de pinheirais que trepavam nas margens. A poente, contra S. Domingos e a rua do Souto, onde estava construída a arena dos torneios para as festas do casamento, eram, em Miragaia, os limites do couto episcopal de D. Hugo, e do couto vizinho dos priores de Cedofeita, outra cidade, terceiro Porto, que vinha juntar-se ao burgo e á cidadela dos bispos. Cedofeita, a velha capela de S. Martinho de Tours, onde a tradição reza ter sido baptizado Theodomiro, nos tempos remotos da queda dos romanos, obtivera também de D. Teresa o seu couto, que se alastrava por toda a metade ocidental do Porto de hoje, mosqueado pelas aldeias e casais dos colonos contratados pelo cabido (4).
(4) Ver o foral para povoação dado pelo prior de Cedofeita, D. Nuno, cm 1237, nos Portug. Monum. histor.; leg. et cons., 1627.

Para o nascente, inclinando em pinheirais até ao esteiro de Campanhã, alongava-se o morro da Batalha com o seu Padrão, em memoria dos assaltos sangrentos dos mouros ao Porto, bravamente defendido pelo conde leonez D. Hermenegildo (920), divisavam-se mais para longe, numa paisagem franca e luminosa, os campos de Rio Tinto, assim chamado por ter corrido em sangue até ao Douro, quando o rei Ordoño veio como um raio em defesa do Porto. Desses combates remotos tivera agora a cidade a lembrança, aclamando em armas o mestre de Avis, nas bravas lutas da guerra da independência.

Por isso o casamento de D. João I era para o Porto uma festa. Ao repicar dos sinos da sé, perdendo-se nas quebradas dos montes, negros de arvoredo, correspondia para além, distantemente, o sino alegre de Cedofeita: dir-se-iam as campainhas das ovelhas, conduzidas em rebanho pelo báculo do seu santo pastor Martinho … Toda a noite fora de festa: danças e trebelhos, jogos e matinadas. O bom povo do Porto, na sua cidade triste, quebrava a monotonia dura da vida nesse instante de folgança, e o tom pardo do granito, pardo como o ar nevoento e húmido, dissipara-se de manhã quando a cidade acordou semeada de murta e rosmaninho, com as casas armadas como capelas. O próprio sol quis ser da festa, penetrando nas ruas lôbregas, e pondo por excepção nas faces dos burgueses uma centelha de vivacidade luminosa.

Cortesia de wikipédia
El-rei chegara de noite, na véspera, com o condestável, que vinha assomado e colérico. Mais velho que o rei, a quem fizera, não se limitava a aconselhá-lo: repreendia-o. Por vezes, vendo-se contrariado, tomava-o tal fúria que tremia a ponto de vacilar sobre os joelhos (5).

(5) «E aquel Santo Condestabre por semelhante houve aquesto sentimento por sobejamente se dar aos cuidados e desembargos, em tanto que por semelhante se querer forçar pera ouvir alguma pessoa d’Estado lhe vinha tal agastamento que elle confessou que já por ello estivera em ponto de cair em terra.». D. Duarte, Leal conselheiro, XX.

Hospedaram-se em S. Francisco, no burgo; e logo de madrugada foram ao paço do bispo D. Rodrigo cumprimentar a rainha. Preparou-se o cortejo. O pequeno espaço que vai desde o paço até à sé estava coalhado de povo em gala. Uma orquestra de trombetas e flautas tocava. Montaram, a par, o rei e a rainha, em dois cavalos brancos cobertos de xairéis recamados de oiro, e, coroados, foram seguindo a procissão, sorrindo amoravelmente para o povo que os aclamava. O arcebispo de Braga, paramentado, levava pela rédea o cavalo da rainha, atrás da qual iam as suas donas fidalgas a pé. Ao lado do rei ia o condestável. A porta da sé, numa nuvem de incenso e numa corte de prelados, o bispo D. Rodrigo, de mitra, báculo e vestes de oiro pontificais, esperava os noivos. Entraram, casou-os, e houve missa.

Cortesia de amaroporto2
Da igreja voltaram ao paço, a comer. O condestável era o mestre-sala das bodas, e quando todos riam, na alegria da mesa, ele ria também, galhofeiro, com esse encanto simples dos temperamentos justos e espontâneos. Desafivelavam-se os cintos, vasavam-se as taças, engorgitavam-se as viandas. As donas fidalgas cantavam em coro, e em torno das mesas os rapazes exercitavam-se em saltos, trepando em cordas suspensas, ou em mastros. O dia passou-se desta forma, acabando o banquete por um baile de roda em que todos, fidalgos e fidalgas, rei e rainha, dançavam: todos, até o próprio condestável com a sua longa barba. onde as cans dos quarenta anos, as cans dos trabalhos e das cóleras mal comprimidas, corriam como fios da prata alegre. Os bispos e os prelados, digerindo, riam.
Fóra, o povo, num gritar delirante, aquecia ainda mais a sala do banquete, e pelas ruas, pelas hortas e campos da cidade, desenrolava-se uma onda férvida de alegria. Em S. Domingos havia torneios, por toda a parte festa: uma festa cujo oitavário durou quinze dias. Descaindo a noite, os prelados benzeram o leito real e D. Filipa, serena, grave, loura, encaminhou-se placidamente para a câmara nupcial levada pela mão de seu marido.

Cortesia de portoantigo
Os primeiros dois anos foram estéreis ; mas logo em 1390 a rainha começou, com uma pontualidade inglesa, a produzir o seu filho anual. Em 1390 nasceu o infante D. Afonso, que morreu de dois anos. Em 1391, D. Duarte, que sucedeu a seu pai no trono. Em 1292, D. Pedro, fadado para melancólicos destinos. Em 1393 falha. Em 1394, D. Henrique, o Scipião português, inventor do nosso império ultramarino.
Em 1395, D. Branca, falecida na infância. Em 1396, provavelmente algum desmancho. Em 1397, D. Isabel, que casou com o duque de Borgonha. Depois, a fecundidade cansa: há intervalos. Em 1400 nasce o infante D. João; em 1402, o pobre mártir de Tânger, o infante D. Fernando, Isaac efectivamente imolado por um Abraham terrível, em holocausto ao génio quase semita que nos impelia, como fenícios, para a aventura dos mares. Depois, o manancial esgota-se». In Os Filhos de D. João I de Joaquim Pedro Oliveira Martins, 3 1761 042963371, Casa Editora, ANTIGA LIVRARIA CHARDRON, Lugan & Genelioux, Successores, Porto. Lisboa, Imprensa Nacional, MDCCCXCI, Library University of Toronto, Oct 6 1967.

Cortesia de Paulo Campos 
Cortesia de J P Oliveira Martins/Paulo Campos/Universidade de Toronto/JDACT